A Descoberta dos Antibióticos
Uma Aventura Feita de Acasos, Preconceitos e Sensibilidade Científica.
ISAC JORGE FILHO *
Em setembro de 1928, o médico Alexander Fleming se preparava para sair de férias. Ao arrumar suas coisas no Departamento de Vacinação do Hospital Saint Mary, deixou uma bandeja com placas de cultura de agar-agar onde havia inoculado estafilococos. Se não estivesse saindo de férias, colocaria a bandeja na incubadora, para que a multiplicação das bactérias fosse rápida, mas como estava saindo por duas semanas,deixou-a à temperatura ambiente. Em sua volta, observou que os estafilococos ocupavam toda a superfície da placa de cultura, exceto relevante área ao redor de uma região mofada.
Fleming já estava envolvido em pesquisas a respeito do combate às bactérias patogênicas. Em 1922, trabalhando gripado, percebeu que uma gota que pingou de sua mucosa nasal em uma placa de cultura levou à inibição do crescimento
de colônias de bactérias. Chamou de lisozima este antisséptico natural, mas acabou se decepcionando com a ação prática da substância descoberta. Agora, estava
diante de outro tipo de agente inibidor, já que entendia que alguma coisa produzida no mofo impedia o crescimento bacteriano. O achado foi casual, mas encontrou em Fleming sensibilidade científica para se aprofundar no estudo do fenômeno, demonstrando
que Louis Pasteur estava certo ao dizer que “no campo da experimentacão o acaso favorece a mente preparada”. Fleming concluiu que, realmente, aquele mofo verde-amarelado, constituído de colônias de Penicillium, impedia o crescimento dos estafilococos e que essa propriedade era decorrente da ação de uma substância produzida nessas colônias. Chamou-a de penicilina. Estava descoberto o primeiro antibiótico.
Esta história, amplamente conhecida, esconde, no entanto, muitos aspectos interessantes envolvendo componentes especiais como acasos, preconceitos e
sensibilidade científica. É importante observar que mais de meio século
antes, em 1875, John Tyndall havia feito a mesma observação de Fleming: a de que o crescimento de certo tipo de mofo impedia o aumento de colônias debactérias. A esse achado não deu importância maior, já que seu foco de interesse científico era outro e a
relação entre as bactérias e as doenças somente seria demonstrada, por Robert Koch, sete anos depois. A marcha da história, no entanto, apontava para Fleming. Como dizem os árabes, estava escrito (“maktub”) que seria ele o descobridor do primeiro antibiótico. Só assim se entende que tantos acasos tenham se somado naquele setembro. É realmente impressionante o conjunto de fatores casuais que propiciaram a descoberta,
muito bem descritos por Meyer Friedman e Gerald W. Friedland em seu livro As dez maiores descobertas da Medicina, traduzido por José Rubens Siqueira, com revisão técnica de Drauzio Varella. Entre tais fatores, destacamos:
1. Hoje se sabe que poucas espécies de Penicillium produzem substâncias antibióticas. O Penicillium notatum do experimento de Fleming é um deles. Por uma incrível coincidência, no pavimento logo abaixo do laboratório de Fleming, um especialista em bolores estava trabalhando com essa espécie de fungo, cultivando-a amplamente. Se fosse outro o tipo de bolor cultivado por aquele especialista, ou
se o laboratório de bolores não ficasse exatamente abaixo, os esporos não chegariam em grande quantidade ao laboratório de Fleming e não contaminariam suas placas de cultura de estafilococos.
2. O estafilococo é uma bactéria sensível à ação da penicilina; muitas outras bactérias não são e, se tivessem sido utilizadas, a descoberta não ocorreria.
3. Foi uma coincidência feliz que os esporos do fungo tenham caído no material de cultura exatamente no momento em que Fleming semeava as bactérias. Se tivessem ali chegado horas depois, quando as bactérias já estivessem proliferando, não haveria crescimento das colônias de fungo.
4. Outro acaso foi o fato de que a bandeja foi deixada fora da incubadora. À temperatura da incubadora o Penicillium não prolifera.
5. É quase incrível que a temperatura ambiente em Londres, que nos dias anteriores era praticamente igual à da incubadora – e, portanto incompatível com o crescimento do fungo –, tenha caído exatamente no dia da semeadura e permanecido baixa, permitindo o crescimento do Penicillium. É provável que Fleming não tenha avaliado a extensão e a importância de sua descoberta, tanto que nunca considerou a possibilidade de usar a penicilina para tratar infecções sistêmicas, incluindo a sífilis
– logo ele, que era considerado o mais competente médico inglês no tratamento dessa doença, tendo feito fortuna tratando sifilíticos. Para esse aparente descaso devem ter se somado vários preconceitos, principalmente o de que uma infecção sistêmica não poderia ser curada através da ingestão ou da injeção de uma droga. Coube a Florey e Chain, da Universidade de Oxford, dar continuidade aos estudos de Fleming, permitindo, por meio da concentração, purificação e produção de grandes quantidades de penicilina, que milhões de pacientes com doenças infecciosas fossem curados. Depois da penicilina muitos outros antibióticos foram extraídos de microrganismos, trazendo claros benefícios no tratamento de doenças infecciosas. Mas, com pelo menos um desses antibióticos, a história chegou a ser irônica: foi quando, em 1948, Benjamin Duggar apresentou um novo medicamento para o tracoma e outras infecções. Esse medicamento, a aureomicina, era obtido de bactérias encontradas em um tipo particular de terra, principalmente nas proximidades de cemitérios. Isso dava certo sentido às “farmácias de sujeiras” dos antigos egípcios. Com o espírito agora alertado consegue-se entender o relativo sucesso de algumas receitas reveladas nos papiros egípcios. É o caso do “lodo da cerveja” ou do “pão em estado de apodrecimento”, citadas no Papiro de Ebers como tratamento para algumas infecções, como a furunculose. A idéia era “expulsar os demônios causadores da doença”, mas é provável que o efeito positivo se devesse à ação de antibióticos produzidos por microrganismos contidos na terra, nos excrementos ou no pão em decomposição. De qualquer forma, os antibióticos determinaram uma verdadeira revolução na antiga luta entre o homem e as bactérias patogênicas. Hoje contamos com essas armas potentes, mas a guerra está longe de terminar. Por meio de mutações e outros recursos biológicos, esses microscópicos adversários têm renascido das cinzas, mantendo a luta. Mas essa já é outra história...
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ISAC JORGE FILHO é Médico Gastroenterologista. Ex-Presidente do Cremesp. Coordenador do Departamento de Bioética e História da Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto.