26 março 2014

ABSENTEÍSMO

O ABSENTEÍSMO DE PACIENTES

                                                                                                  ISAC JORGE FILHO

     É queixa comum por parte de chefias de empresas privadas ou de repartições públicas a ausência de funcionários em horários de trabalho por diferentes razões, inclusive consultas ou tratamentos médicos e odontológicos. Por outro lado torna-se cada vez mais freqüente um outro tipo de absenteísmo: o do paciente que marca consulta ou tratamento e, sem dar menor satisfação, simplesmente não aparece.

     Trata-se de desrespeito que quebra, já de início, uma futura relação médico-paciente, importante pilar para bons resultados nos tratamentos. No Cremesp temos recebido um número cada vez maior de queixas desse tipo. Não há o que possamos fazer: o Cremesp é uma Autarquia Federal voltada para a fiscalização dos médicos e não dos pacientes. No entanto, alguns colegas tem colocado em suas denúncias a seguinte pergunta: “Quando um paciente que não conheço já falta à primeira consulta sem justificativas tenho direito de orientar a secretaria do consultório para não atender nova solicitação de consulta?”. A resposta não é fácil, mas esse direito está bem claro no Código de Ética Médica em vigor, que diz, no inciso VII do Capítulo I (Princípio Fundamentais): “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
        Penso que algo está muito errado na relação entre profissionais de saúde e setores da população quando se chega ao ponto de pensar em não atender um paciente, mesmo preenchidas as condições citadas acima (não é urgência nem emergência, existem outros médicos e o não atendimento naquela ocasião não trará danos à saúde), mas não há como não levar em conta a revolta do profissional ao perder horários de atendimento por falta de respeito de alguns pacientes. É um fenômeno que merece amplo estudo especializado. Realmente não é fácil aceitar que uma pessoa não entenda que, ao marcar uma consulta, está assumindo um compromisso com o médico ou dentista e ocupando um horário que poderia ser utilizado por outro. Faltar a esse compromisso sem justificativas é ato de desconsideração e desrespeito. Uma boa relação médico-paciente não se inicia assim e talvez seja bom, para as duas partes, nem começar. 
      É claro que existem situações excepcionais que justificam a ausência do paciente, mas, na grande maioria das vezes, um simples telefonema, transferindo ou cancelando a consulta, evitaria o problema e demonstraria o respeito mútuo que deve prevalecer em uma boa relação entre pessoas. 


22 março 2014

CRÔNICA DA ALDEIA GLOBAL


                        GRATIDÃO
                                    JOSÉ ANÉZIO PALAVERI *

                                               Olhando pelo retrovisor, após 47 anos, de olhos para o futuro.
            Numa quarta feira de uma semana santa, um médico jovem, tendo completado  26 anos, inseguro e desconfiado, chega à cidade, em 1967.
            Quase tudo desconhecido. Só conhecia o Tenente Guiguer, após um rápido contato lá no Hospital Militar e a Altair de Barros que acompanhei no Hospital das Clínicas, ainda no quinto ano da faculdade, por ocasião de uma de suas internações.
            Se soubesse da bondade do povo de Pirassununga,  e  dos oficiais do !7ºRC, nem teria me estressado tanto. Mas, na vida é assim mesmo, o novo nos deixa em sobressalto, e aí estava um futuro pela frente, um jovem convocado para servir como médico, em virtude de uma legislação que o surpreendeu no final do curso médico, após tantos planos deixados para trás.
            Um ano e alguns meses  depois trouxe a Maria da Penha, já casado, começando a construir com ela uma família que me deixa orgulhoso pela sua história. E Pirassununga albergou nosso futuro...
            Agora, o maior sentimento: Gratidão.
            Deram-me mais do que eu necessitava.
            Milhares de pessoas passaram por nossas vidas, demonstrando carinho, afeto, solidariedade, com acolhimento.
            Tenho uma relação muito extensa das pessoas que conviveram comigo nestes anos, com respeito, estímulo, admiração e  sentimentos de ação de graças. O espaço é muito curto para elencar todos os seus nomes, mas o coração está pleno de gratidão.
            Ninguém é uma ilha, crescemos convivendo, aprendendo com os outros, acolhendo cada um a seu modo, com suas qualidades e limitações. À medida que o tempo foi passando as amizades foram se multiplicando, assim como os compromissos com a cidade. Vivi a vida de nossas famílias, nossas instituições com dedicação e interesse pelo progresso de todos nós.
            Cheguei a morar na Santa Casa, numa época em que nem havia Pronto Socorro, trabalhando dia e noite com as abnegadas irmãs de caridade que lá viviam. Convivência com o Dr. Lyrio em meu primeiro emprego no Centro de Saúde e daí, acompanhando toda a evolução de nossa saúde, até hoje.
            A fundação da APAE, com a equipe formada por Dona Joilda, em 1969...A equipe do MFC, os primeiros encontros de noivos, o Ministério Leigo, a Pascom, o convívio ininterrupto com o Padre Otávio, a pastoral da Saúde, os empregados, as secretárias do consultório, na convivência diária...
            Dr. Loureiro, tantos amigos, tantos colegas de profissão, estou mostrando alguns, lembrando-me de todos que a memória me permite.
            Aos amigos da CEMEP, à equipe da Escola de Pais, de saudosa memória, às escolas e ao Colégio John Kennedy que me ajudaram a educar meus filhos, que me orgulham com suas vidas, muito obrigado.
            Nem todos voltam para agradecer. Eu, como aquele um dos dez leprosos do Evangelho, que foram curados, aproveito este momento para minha oração de ação de graças pelos moradores desta cidade e por todos que cruzaram meus caminhos nestes anos, onde quer que tenhamos convivido. É claro que, a Deus, eu agradeço todos os dias...

         * Médico, Escritor, APLACE (Academia Pirassununguense de Letras, Artes, Ciências e Educação.
           

19 março 2014

DIFERENCIANDO O QUE É AVANÇO

DIFERENCIANDO O QUE É AVANÇO

                                                                                  ISAC JORGE FILHO

É inegável o avanço tecnológico da Medicina. Não se pode falar o mesmo dos aspectos éticos e de relacionamento. O exercício profissional da medicina em consultórios e ambulatórios tem se tornado gradativamente mais complicado, a começar pelo atendimento em unidades de saúde e pronto-atendimentos. O sistema de plantões leva a uma quebra da relação médico-paciente. O retorno do paciente para trazer exames ou a continuidade do tratamento dificilmente encontrará o mesmo médico, obrigando, a um reinício de relacionamento. Mas, nos consultórios privados os costumes também estão mudando e, do meu ponto de vista, para pior. Vários pontos merecem consideração. Vamos,  hoje, nos ater às dificuldades de se lidar corretamente com a Internet, não sendo raros os desencontros porque o paciente, escudado em leituras de trechos de internet, cuja origem e interesses sequer conhece, envolve-se de “autoridade” em conhecimento especializado e passa a contestar condutas e informações de seu médico. Está quebrada uma relação fundamental e a insistência em sua continuidade será fadada ao insucesso. Sei de situações nas quais o profissional explicou que não iria mais atender o paciente que tinha claramente escolhido o “Dr.Google” como seu “médico de confiança”. Cabem aqui duas considerações. A primeira é a falsa ideia de que o médico é obrigado a atender a todos, sob pena de ser denunciado por “omissão de socorro”. Na verdade, diante de situações graves, não só o médico é obrigado a atender como até os não médicos, por exemplo,  em casos de atropelamento. É claro que o médico tem todo o interesse em atender todos, até porque é sua profissão. No entanto, o Código de Ética Médica é bem claro quando em seu Capítulo I, inciso VII determina que “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.” A segunda consideração diz respeito ao papel da Internet que, sem dúvida, é um importante e revolucionário meio de informação e atualização, mas que não substitui, de forma alguma, a presença do médico e a relação médico-paciente. É bom que o paciente saiba que não existe um controle de qualidade ou um Conselho Editorial na Internet, ou seja, a pessoa escreve o que quer. Muitas vezes é verdade e importante, muitas outras é besteira pura ou está ligada a interesses comerciais. Entre no “Google” e procure, por exemplo, “tratamento com urina humana”. Você vai regredir alguns séculos a um tempo que isto era tido como verdade absoluta. Nesta linha, você pode encontrar o que quiser na Internet, muitas coisas sérias no meio de muita bobagem. O problema é que não há um sistema para diferenciar um do outro. Talvez o único seja conversar com seu médico de confiança, mas, não estabelecendo polêmica no papel de “médico graduado pela Internet”, e sim buscando, como paciente, esclarecer suas dúvidas. Nesta situação, e procurando sítios de sociedades ou revistas médicas sérias, a Internet será de grande valor e até reforçará a relação médico-paciente, pilar sobre o qual se assenta a medicina exercida com seriedade.
................................................................................................
ISAC JORGE FILHO é Médico, Doutorado em Cirurgia, Professor Universitário e Ex-Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.



13 março 2014

INCOERÊNCIAS

INCOERÊNCIAS

                                                                Isac Jorge Filho

O governo resolveu fazer uma “blitz” contra a medicina e os médicos brasileiros. Por trás disso há um tudo, que não vale nada. Algumas determinações são tão absurdas que se  Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto) ainda fosse vivo teria colocado o conjunto como fazendo parte do “perigoso terreno da galhofa”. Uma delas, sob o pretexto de fixar médicos em pequenas cidades, oferecia, ao fim de dois anos de “estágio” 20% de vantagens nas notas dos exames feitos para médicos-residentes. Parece piada: você diz que quer fixar médicos em pequenas cidades e acena com um “prêmio” para eles saírem  para fazer residência em Centros maiores. A análise fica pior quando você a aprofunda: nos dois anos iniciais os médicos oferecem sua experiência aos pobres das cidadezinhas, ou seja, experiência nenhuma, e quando acumulam experiência, às custas do sacrifício dos pacientes,  vão fazer residência e levam a experiência para os centros maiores. É o Robin Hood ao inverso.  As incoerências não param por ai. Recentemente tivemos uma reunião no Centro Médico na qual um colega relatou sua experiência quando, de uma penada, a carreira de sanitarista foi extinta. Desempregado, foi para uma pequena cidade do sertão (vamos chamar de Santa Cruz do Deus me livre). Ao longo dos meses notou que o cemitério da cidade, que estava quase vazio quando chegou, passou a ser ocupado de forma relevante. Antes que alguém o criticasse explicou que o que ocorreu foi que os doentes graves das redondezas ao tomar conhecimento da chegada de um médico passaram a procurá-lo. Acontece que ele é um médico e não um mágico e para trabalhar com o nível de eficiência necessário precisava de uma infra-estrutura que assegurasse uma equipe de saúde e equipamentos que permitissem exames complementares. Como estava sozinho era de se esperar que os resultados fossem ruins, como de fato foram. Passemos para a proposta atual:  a incoerência governamental não fala em equipes de saúde, mas centra todos os problemas na insuficiência no número de médicos. Incoerentemente não fala em qualidade e não quer nem saber de avaliar os médicos estrangeiros que contrata. O que importa? “Meio” médico basta, segundo defensores da proposta. Mas, desde que não seja para tratar ricos, parentes, amigos e correlegionários.   Fora disso meio médico basta. Não importa se não entendem sua língua e se não conseguem ser aprovado em exames básicos de conhecimentos, habilidades e atitudes.    

10 março 2014

AS MULHERES E SUA LUTA SECULAR

AS MULHERES E SUA LUTA SECULAR

ISAC JORGE FILHO 
No dia 8 de março de 1857 as operárias de uma indústria têxtil de Nova Iorque entraram em greve. Submetidas a jornadas diárias de 16 horas de trabalho, recebiam menos de um terço do salário masculino. Reivindicavam a redução da jornada para dez horas. A resposta dos patrões dava bem a medida do tratamento dedicado às mulheres: mandaram fechar as operárias na fábrica, onde um incêndio (Acidental? Criminoso?) levou cento e trinta delas a morte terrível. Em 1910, a Confederação Internacional de Mulheres, realizada na Dinamarca, decidiu, como homenagem àquelas operárias, declarar o Dia 8 de março como o “Dia Internacional da Mulher” e assumir o rosa como cor oficial do movimento, para lembrar a tonalidade rosa-avermelhada do fogo daquele martírio.
Não foi a primeira vez que o fogo participou de forma cruel na longa história de luta das mulheres pela emancipação e eqüidade. Foi por meio dele que supliciavam as “bruxas” do passado. Até a queda do Império Romano “bruxo” era o nome que se dava para um participante de magia. Essas pessoas –na maioria, mulheres- eram respeitadas e temidas por seus conhecimentos, sendo indivíduos especiais. A partir da Idade Média passaram a ser perseguidas, sob acusação de “bruxaria”, todas as mulheres que ousassem pensar ou agir de modo diferente da cultura absolutamente machista e fanaticamente religiosa que imperava. Na Inquisição, as bruxas eram assassinadas “em nome de Deus”. A escolha do fogo, como agente do suplício, tinha a explicação hipócrita das autoridades eclesiásticas da época de que “a Igreja não gosta de verter sangue”. Joana D’Arc foi apenas uma das milhares de martirizadas pelo fogo. Preconceitos e perseguições foram, ao longo dos anos, impedindo que a mulher assumisse seu lugar de direito na sociedade, como pessoa, com direitos e deveres iguais aos do homem. A luta da mulher pela eqüidade é uma das mais duras e penosas da história da humanidade e alguns marcos devem ser lembrados.
Em 1691, o Estado de Massachussetts permite o voto das mulheres, mas elimina-o em 1789. Em 1788 o filósofo e político Condorcet reclama para as mulheres o direito à educação, à participação na vida política e o acesso ao emprego. Em 1792, Mary Wollstpnecraft, pioneira do movimento feminista, publica um conjunto de reivindicações das mulheres. Em 1840, Lucrecia Mott lança as bases da “Equal Rights Association” pedindo direitos iguais para todos. Em 1859 um movimento feminino em São Petersburgo passa a lutar pela emancipação da mulher russa. Em 1862 as mulheres passam a votar nas eleições municipais suecas. Em 1869 o território norte-americano de Wyoming deu o direito de voto às mulheres. Em 1870, na França e Suécia as mulheres passam a ter acesso aos estudos médicos. Em 1874 o Japão inaugura sua primeira escola normal para mulheres. Na América do Sul, o primeiro voto de mulher foi dado por Celina Guimarães Viana, em 1927, em Mossoró (RN), mas o voto feminino no Brasil só foi regulamentado em 1934.
Nunca consegui aceitar o preconceito de gênero, certamente por influência de minha mãe, Cristina, que sempre viveu à frente de seu tempo. Depois, pelos exemplos e ensinamentos da Leila, que conheci na Faculdade de Medicina em uma época que “estudar medicina não era para mulheres”. Sua visão de eqüidade entre os gêneros certamente foi um dos fatores que me levaram a escolhê-la como companheira para toda a vida. Muito do que restou de preconceito, que a cultura machista me legou, minha filha Cristine se encarregou de tirar. Por tudo isso sempre fui uma voz a se levantar à favor da luta das mulheres por seu lugar de direito. Deus me recompensou, ao me conceder duas netas, Luísa e Giovanna, que, certamente, continuarão a luta de sua bisavó, avós e mães. Para marcar essa benção concedeu-me que uma delas nascesse exatamente no dia 8 de março, o “DIA INTERNACIONAL DA MULHER”.

Apesar dos inegáveis avanços, conquistados através de séculos, a luta das mulheres ainda está longe de terminar. Assédio sexual, violência no lar, dificuldade em empregos, salários mais baixos que os dos homens, são coisas que ainda existem, em níveis variáveis, em diferentes países e em diferentes regiões. São problemas que atingem a mulher, mas que interessam a todos, já que dizem respeito à dignidade humana e a luta pela dignidade humana é dever de todos e de cada um.

05 março 2014

A DESCOBERTA DOS ANTIBIOÓTICOS

A Descoberta dos Antibióticos 
Uma Aventura Feita de Acasos, Preconceitos e Sensibilidade Científica.

                                                              ISAC JORGE FILHO *

         Em setembro de 1928, o médico Alexander Fleming se preparava para sair de férias. Ao arrumar suas coisas   no Departamento de Vacinação do Hospital Saint Mary, deixou uma bandeja com placas de cultura de  agar-agar onde havia inoculado estafilococos. Se não  estivesse saindo de férias, colocaria a bandeja na incubadora, para que a multiplicação das bactérias fosse rápida, mas como estava saindo por duas semanas,deixou-a à temperatura ambiente. Em sua volta, observou que os estafilococos ocupavam toda a superfície  da placa de cultura, exceto relevante área ao redor de uma região mofada.
          Fleming já estava envolvido em pesquisas a respeito do combate às bactérias patogênicas. Em 1922, trabalhando gripado, percebeu que uma gota que pingou de sua mucosa nasal em uma placa de cultura levou à inibição do crescimento
de colônias de bactérias. Chamou de lisozima este antisséptico natural, mas acabou se decepcionando com a ação prática da substância descoberta. Agora, estava
diante de outro tipo de agente inibidor, já que entendia que alguma coisa produzida no mofo impedia o crescimento bacteriano. O achado foi casual, mas encontrou em Fleming sensibilidade científica para se aprofundar no estudo do fenômeno, demonstrando
que Louis Pasteur estava certo ao dizer que “no campo da experimentacão o acaso favorece a mente preparada”. Fleming concluiu que, realmente, aquele mofo verde-amarelado, constituído de colônias de Penicillium, impedia o crescimento dos estafilococos e que essa propriedade era decorrente da ação de uma substância produzida nessas colônias. Chamou-a de penicilina. Estava descoberto o primeiro antibiótico.
               Esta história, amplamente conhecida, esconde, no entanto, muitos aspectos interessantes envolvendo componentes especiais como acasos, preconceitos e
sensibilidade científica. É importante observar que mais de meio século
antes, em 1875, John Tyndall havia feito a mesma observação de Fleming: a de que o crescimento de certo tipo de mofo impedia o aumento de colônias debactérias. A esse achado não deu importância maior, já que seu foco de interesse científico era outro e a
relação entre as bactérias e as doenças somente seria demonstrada, por Robert Koch, sete anos depois. A marcha da história, no entanto, apontava para Fleming. Como dizem os árabes, estava escrito (“maktub”) que seria ele o descobridor do primeiro antibiótico. Só assim se entende que tantos acasos tenham se somado naquele setembro. É realmente impressionante o conjunto de fatores casuais que propiciaram a descoberta,
muito bem descritos por Meyer Friedman e Gerald W. Friedland em seu livro As dez maiores descobertas da Medicina, traduzido por José Rubens Siqueira, com revisão técnica de Drauzio Varella. Entre tais fatores, destacamos:
      1. Hoje se sabe que poucas espécies de Penicillium produzem substâncias antibióticas. O Penicillium notatum do experimento de Fleming é um deles. Por uma incrível coincidência, no pavimento logo abaixo do laboratório de Fleming, um especialista em bolores estava trabalhando com essa espécie de fungo, cultivando-a amplamente. Se fosse outro o tipo de bolor cultivado por aquele especialista, ou
se o laboratório de bolores não ficasse exatamente abaixo, os esporos não chegariam em grande quantidade ao laboratório de Fleming e não contaminariam suas placas de cultura de estafilococos.
       2. O estafilococo é uma bactéria sensível à ação da penicilina; muitas outras bactérias não são e, se tivessem sido utilizadas, a descoberta não ocorreria.
        3. Foi uma coincidência feliz que os esporos do fungo tenham caído no material de cultura exatamente no momento em que Fleming semeava as bactérias. Se tivessem ali chegado horas depois, quando as bactérias já estivessem proliferando, não haveria crescimento das colônias de fungo.
         4. Outro acaso foi o fato de que a bandeja foi deixada fora da incubadora. À temperatura da incubadora o Penicillium não prolifera.
         5. É quase incrível que a temperatura ambiente em Londres, que nos dias anteriores era praticamente igual à da incubadora – e, portanto incompatível com o crescimento do fungo –, tenha caído exatamente no dia da semeadura e permanecido baixa, permitindo o crescimento do Penicillium. É provável que Fleming não tenha avaliado a extensão e a importância de sua descoberta, tanto que nunca considerou a possibilidade de usar a penicilina para tratar infecções sistêmicas, incluindo a sífilis
– logo ele, que era considerado o mais competente médico inglês no tratamento dessa doença, tendo feito fortuna tratando sifilíticos. Para esse aparente descaso devem ter se somado vários preconceitos, principalmente o de que uma infecção sistêmica não poderia ser curada através da ingestão ou da injeção de uma droga. Coube a Florey e Chain, da Universidade de Oxford, dar continuidade aos estudos de Fleming, permitindo, por meio da concentração, purificação e produção de grandes quantidades de penicilina, que milhões de pacientes com doenças infecciosas fossem curados. Depois da penicilina muitos outros antibióticos foram extraídos de microrganismos, trazendo claros benefícios no tratamento de doenças infecciosas. Mas, com pelo menos um desses antibióticos, a história chegou a ser irônica: foi quando, em 1948, Benjamin Duggar apresentou um novo medicamento para o tracoma e outras infecções. Esse medicamento, a aureomicina, era obtido de bactérias encontradas em um tipo particular de terra, principalmente nas proximidades de cemitérios. Isso dava certo sentido às “farmácias de sujeiras” dos antigos egípcios. Com o espírito agora alertado consegue-se entender o relativo sucesso de algumas receitas reveladas nos papiros egípcios. É o caso do “lodo da cerveja” ou do “pão em estado de apodrecimento”, citadas no Papiro de Ebers como tratamento para algumas infecções, como a furunculose. A idéia era “expulsar os demônios causadores da doença”, mas é provável que o efeito positivo se devesse à ação de antibióticos produzidos por microrganismos contidos na terra, nos excrementos ou no pão em decomposição. De qualquer forma, os antibióticos determinaram uma verdadeira revolução na antiga luta entre o homem e as bactérias patogênicas. Hoje contamos com essas armas potentes, mas a guerra está longe de terminar. Por meio de mutações e outros recursos biológicos, esses microscópicos adversários têm renascido das cinzas, mantendo a luta. Mas essa já é outra história...

.........................................................................................................................................................
ISAC JORGE FILHO é Médico Gastroenterologista. Ex-Presidente do Cremesp. Coordenador do Departamento de Bioética e História da Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto.