17 junho 2015

A HISTÓRIA DAS INFECÇÕES

A História das Infecções*

                                                       Isac Jorge Filho**

                        A história das infecções perde-se na escuridão dos tempos. Papiros, como o de Ebers e o de Edwin Smith, decifrados de inscrições feitas até 3.000 anos antes de Cristo, já relatavam tratamentos de feridas infectadas realizados pelos egípcios. A ignorância quanto à origem das infecções e epidemias levava a “tratamentos” estranhos, sempre relacionados com a idéia de que a doença era causada por maus espíritos ou como castigo divino. Isso explica, por exemplo, a utilização de excrementos animais, e mesmo humanos, como recursos terapêuticos que buscavam, em última análise, “expulsar os demônios causadores da doença”. Esse pensamento se relaciona com a existência das “farmácias de sujeiras” que começaram no antigo Egito, continuaram com grande prestígio na Idade Média e, para alguns tratamentos, atravessaram o século XIX, chegando ao início do século XX. Enquanto isso, epidemias de infecções dizimavam populações e as feridas contaminadas eram quase sinônimos de morte. A Bíblia Sagrada, no livro de Samuel, do Antigo Testamento, relata dramaticamente a epidemia depeste bubônica que dizimou a população da cidade filisteia de Asdod e matou mais de 50.000 pessoas em Bet-Chemech, apesar de terem destruído com fogo os veículos de transporte e animais que vieram de Asdod. O uso do fogo era muito comum, já que se entendia que o ar carregava os demônios, ou o que fosse responsável pelas epidemias. Foram séculos e séculos de horror e morte por doenças infecciosas. A falta de conhecimentos fazia com que mudasse muito pouco o que os antigos médicos egípcios prescreviam para feridas infectadas: carne fresca, misturas à base de mel, soluções de sais de cobre e vários tipos de “misteriosas” ervas1. É interessante o uso de favos de mel pelos antigos egípcios, já que hoje se sabe que eles contêm uma substância, a inibina, produzida pelas glândulas salivares das abelhas, que apresenta atividade antimicrobiana2. Os astecas obtinham resultados excepcionais em relação às feridas e cirurgias superficiais porque tinham o hábito da limpeza local das mesmas. A índole guerreira deste povo talvez tenha facilitado essa percepção em função dos ferimentos bélicos. E este aspecto foi publicamente reconhecido por Hernan Cortez, que, ao ser ferido nas mãos durante a conquista do México, preferiu ser cuidados pelos “médicos” astecas do que por aqueles trazidos da Europa na sua companhia3. A preocupação com as feridas estiveram sempre presentes, em função, principalmente, dos ferimentos de guerra. Hipócrates, que viveu de 460 a.C. a 370 a.C., recomendava a seus discípulos, na ilha de Cós, que se lavassem as feridas com água fervida e vinho, trabalhando com mãos limpas. Galeno (131-201 a.C.) preconizava que as feridas fossem lavadas com vinho, suturadas com linho e cobertas com ataduras4. A partir daí pouco se evoluiu, sendo os tratamentos cirúrgicos evitados ao máximo, pois os resultados eram desoladores, uma vez que, quando o paciente não morria por hemorragia intra-operatória, acabava, na maior parte das vezes, morrendo por infecção. A situação perdurou até que, a partir da segunda metade do século XIX, o aprimoramento da anestesia e a compreensão das causas de infecção abriram caminho para o grande desenvolvimento da Cirurgia.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Jorge-Filho I. A descoberta dos antibióticos. Revista Ser
Médico out/nov/dez 2001; Conselho Regional de Medicina
do Estado de São Paulo. 17:37-39.
2. Craig CP. Preparation of the skin for surgery. Infection
Control 1986; 7:257-8.
3. de Paula RA. Cuidados com a região a ser operada.
In: Jorge-Filho I, Andrade JI, Ziliotto Júnior A. Cirurgia
geral: Pré e Pós-Operatório. São Paulo: Atheneu; 1995;
p.42-44.
4. Gonçalves R, Rivaben JH. Assepsia e Antissepsia. In:
Saad Júnior R, Maia AM, Salles RARV, editores. Tratado
de Cirurgia do CBC. São Paulo: Editora Atheneu; 2009;
p.181-196.
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                   * In  Jorge-Filho I - Cirurgia Geral: Pré e pós-operatório - Segunda Edição- Editora Atheneu. 

                         ** saudebioéticaecidadania.isac@gmail.com












14 junho 2015

VOZES D'ÁFRICA AINDA

“VOZES D’ÁFRICA” AINDA
                                                                                  ISAC JORGE FILHO

Todos os dias são noticiadas dezenas, centenas ou milhares de mortes de africanos. Quando a causa não é a fome, conseqüência da miséria e falta de apoio mundial, a indústria da guerra cuida de vender armas que sustentam lutas internas por terras ou colheitas, levando a massacres  de homens, mulheres e crianças, como ocorre no Sudão. A “ajuda” ocidental sempre ocorre após o caos. Mandam alimentos e roupas para os sobreviventes. Não se lembram de que um apoio tecnológico adequado e investimentos poderiam ter evitado a mortandade. Nos últimos tempos vem se tornando cada vez mais freqüentes os naufrágios de embarcações nas quais, como nos antigos navios negreiros, “comerciantes” lotam navios com africanos. O problema é que agora não são mais bem-vindos, como eram quando chegavam como escravos. Fogem de um continente devastado por  séculos de exploração. Buscam socorro em quem os explorou por tanto tempo, mas parece que as pessoas de pele clara jamais irão receber como irmãos aqueles de pele negra. Mesmo considerando o enorme débito que contraímos ao escravizar e explorar aquele continente.
Em 11 de junho de 1868, o poeta Castro Alves externou sua revolta por meio do impactante poema “Vozes d’África”.  Passado um século e meio, mais precisamente, 147 anos, a tecnologia conquistou enormes avanços, o Homem já pisou no solo lunar, mas é utilizada também para continuar explorando a África e os africanos. A Europa, que não teve cerimônias em ocupar o a África, se nega a receber os produtos humanos de sua exploração..
Diante de tudo isso é oportuno  pedir respostas a Deus, transcrevendo Castro Alves em seu “Vozes d’África”:

                  “Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
                  Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
                  Embuçado nos céus?
                  Há dois mil anos te mandei meu grito,
                  Que embalde desde então corre o infinito...
                  Onde estás, Senhor Deus?...

                  Qual Prometeu tu me amarraste um dia
                  Do deserto na rubra penedia
                  ...Infinito: galé!...
                  Por abutre — me deste o sol candente,
                  E a terra de Suez — foi a corrente
                  Que me ligaste ao pé...

                  O cavalo estafado do Beduíno
                  Sob a vergasta tomba ressupino
                  E morre no areal.
                 Minha garupa sangra, a dor poreja,
                 Quando o chicote do simoun dardeja
                 O teu braço eternal.

                 Minhas irmãs são belas, são ditosas...
                 Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
                Dos haréns do Sultão.
                Ou no dorso dos brancos elefantes
                Embala-se coberta de brilhantes
                Nas plagas do Hindustão.

                Por tenda tem os cimos do Himalaia...
                Ganges amoroso beija a praia
                Coberta de corais ...

                A brisa de Misora o céu inflama;
                E ela dorme nos templos do Deus Brama,
                — Pagodes colossais...

                A Europa é sempre Europa, a gloriosa!...
                A mulher deslumbrante e caprichosa,
                Rainha e cortesã.
                Artista — corta o mármor de Carrara;
                Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
                No glorioso afã!...

                Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
                Ora uma c'roa, ora o barrete frígio
                Enflora-lhe a cerviz.
                Universo após ela — doudo amante
                Segue cativo o passo delirante
                Da grande meretriz.

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                Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
                Em meio das areias esgarrada,
                Perdida marcho em vão!
                Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
                talvez... p'ra que meu pranto, ó Deus clemente!
                Não descubras no chão...

                E nem tenho uma sombra de floresta...
                Para cobrir-me nem um templo resta
                No solo abrasador...
                Quando subo às Pirâmides do Egito
                Embalde aos quatro céus chorando grito:
               "Abriga-me, Senhor!..."

                Como o profeta em cinza a fronte envolve,
                Velo a cabeça no areal que volve
                O siroco feroz...

            Quando eu passo no Saara amortalhada...
            Ai! dizem: "Lá vai África embuçada
            No seu branco albornoz... "

            Nem vêem que o deserto é meu sudário,
            Que o silêncio campeia solitário
            Por sobre o peito meu.
            Lá no solo onde o cardo apenas medra
            Boceja a Esfinge colossal de pedra
            Fitando o morno céu.

            De Tebas nas colunas derrocadas
            As cegonhas espiam debruçadas
            O horizonte sem fim ...
            Onde branqueia a caravana errante,
            E o camelo monótono, arquejante
            Que desce de Efraim
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            Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
            É, pois, teu peito eterno, inexaurível
            De vingança e rancor?...
            E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
            Eu cometi jamais que assim me oprime
            Teu gládio vingador?!
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             Foi depois do dilúvio... um viadante,
             Negro, sombrio, pálido, arquejante,
             Descia do Arará...
             E eu disse ao peregrino fulminado:
             "Cam! ... serás meu esposo bem-amado...
             — Serei tua Eloá. . . "

             Desde este dia o vento da desgraça
             Por meus cabelos ululando passa
             O anátema cruel.
             As tribos erram do areal nas vagas,
             E o nômade faminto corta as plagas
             No rápido corcel.

             Vi a ciência desertar do Egito...
             Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
             Trilho de perdição.
            Depois vi minha prole desgraçada
            Pelas garras d'Europa — arrebatada —
            Amestrado falcão! ...

            Cristo! embalde morreste sobre um monte
            Teu sangue não lavou de minha fronte
            A mancha original.
            Ainda hoje são, por fado adverso,
            Meus filhos — alimária do universo,
            Eu — pasto universal...

           Hoje em meu sangue a América se nutre
           Condor que transformara-se em abutre,
           Ave da escravidão,
           Ela juntou-se às mais... irmã traidora
           Qual de José os vis irmãos outrora
           Venderam seu irmão.

           Basta, Senhor! De teu potente braço
           Role através dos astros e do espaço
           Perdão p'ra os crimes meus!
           Há dois mil anos eu soluço um grito...
           escuta o brado meu lá no infinito,
           Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...”
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                            Procurei manter as expressões poéticas e os termos originais. Alguns deles até estão em desuso. Peço desculpas aos meus poucos e eventuais leitores, mas entendo que como nada mudou para a África e para os africanos, exceto o lucro cada vez maior dos exploradores,  o poema original devia ser mantido, como mantida está minha admiração por Castro Alves.