27 fevereiro 2014

O PROJETO "MAIS MÉDICOS"

O PROJETO "MAIS MÉDICOS"

José Alberto Mello de Oliveira

Acompanho com atenção esse programa do Governo Federal para levar o atendimento médico primário ao povo mais necessitado do país, geralmente vivendo na periferia das grandes cidades ou em vilarejos distantes e de difícil acesso. Em linhas gerais, o programa contrata médicos brasileiros e estrangeiros pagando-lhes R$ 10.000,00 (dez mil reais mensais). Há várias peculiaridades nessa contratação:
1)     Os médicos estrangeiros estão dispensados de revalidar o diploma obtido no Exterior, valendo o documento que trouxerem do seu país de origem. Não obstante, a Medida Provisória, transformada em Lei, determina que eles devem ser fiscalizados pelos Conselhos Medicina (CFM e CRM);
2)     Esses médicos recebem uma “bolsa” e não um “salário” para exercer a atividade;
3)     A grande maioria dos médicos estrangeiros é oriunda de Cuba, país com o qual o governo Brasileiro fez um convênio de terceirização da assistência médica, com intermediação da OPAS (Organização Panamericana de Saúde). Conforme tem sido noticiado pela imprensa em geral a OPAS intervém e repassa o pagamento ao governo cubano. No Brasil, o médico recebe R$ 400,00 (quatrocentos reais), e em Cuba um crédito equivalente a R$ 600,00 (seiscentos reais), ficando o governo cubano de posse do restante;
A forma de implantação do programa gerou protestos veementes da classe médica, através das associações de classe (Associação Médica Brasileira, Associações Regionais de Medicina, Sindicatos, Federação Nacional de Médicos etc.) e de grupos isolados de médicos, que chegaram mesmo a hostilizar em público, os estrangeiros.
Todavia, a reação mais significativa foi do CFM e dos CRM, recusando o registro dos médicos estrangeiros e negociando com prudência a forma de atuar nesta nova situação. A propaganda do Governo Federal e a politização da questão levaram a classe médica como um todo à execração pública, inclusive os Conselhos e muita bobagem foi escrita no calor do momento.
Agora, que a poeira está assentando é possível fazer comentários menos inflamados e esclarecer a população sobre o papel dos Conselhos:
1)     O CFM e os CRM constituem uma Autarquia Federal e são, portanto, um serviço público e não uma associação de classe; essa Autarquia foi criada durante o governo Kubitscheck através da Lei nº 3.268 de 30/09/1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045 de 19/07/1958 (que aprovou o Regulamento do CFM e CRM a que se refere a Lei nº 3.268 de 30/09/1957). Posteriormente, esses dispositivos legais foram modificados pela Lei nº 6.838 de 29/10/1980, pela Lei nº 9784 de 29/01/1999, pela Lei nº 11.000 de 15/12/2004 e pelo Decreto nº 6821 de 14/04/2009, conjunto de leis que regulamentam o Código de Ética Médica e o ordenamento para a fiscalização do exercício profissional no Brasil;
2)     Embora Serviço Público, constituídos como Autarquia, os Conselhos são mantidos com anuidade paga pelos médicos e não dependem de dinheiro público do Tesouro;
3)     Alguns comentaristas imaginaram que os Conselhos teriam que intervir para melhorar a formação do médico e orientar os médicos brasileiros a atender toda a população, em total ignorância sobre os limites legais da competência dos mesmos.
4)     Ao receber o diploma, o registro do médico nos Conselhos é obrigatório por lei e não uma opção associativa do profissional, sem o qual ele estará impedido legalmente de exercer a profissão no território nacional. Uma vez registrado, o médico pode exercer a profissão e fica sujeito às normas e regras do Código de Ética Médica. Exercer a Medicina sem registro no Conselho do respectivo Estado, onde trabalha, é exercício ilegal da Medicina; O CRM é obrigado a registrar o médico, que apresenta documento de conclusão de curso em Escola Médica reconhecida;
5)     Médicos estrangeiros podem exercer livremente a Medicina no Brasil, desde que tenham revalidado o diploma estrangeiro; atualmente há o processo “REVALIDA”, que submete os diplomas estrangeiro à avaliação de competências e habilidades; a seguir registram-se nos Conselhos e são liberados para o exercício profissional.
6)     Além da função cartorial de expedição do registro, os Conselhos têm a função judicante, fiscalizando o exercício profissional, investigando as denúncias ou suspeitas de ilícito ético, promovendo sindicâncias, que podem ou não redundar em processo ético-profissional (PEP). O PEP tem tramitação semelhante à dos processos nas áreas cível e penal, podendo culminar, ao fim do mesmo, com a cassação do direito de exercer a profissão. Ou seja, a função da Autarquia, é a de promover o exercício da boa medicina e proteger a população dos maus médicos.
7)     O CREMESP iniciou um exame anual de avaliação de egressos das Escolas de Medicina do Estado, o qual tem revelado o baixo rendimento do aparelho formador e denuncia o risco do critério político e não técnico da abertura de novos cursos, sem a infraestrutura adequada. Para auxiliar a atualização dos médicos registrados, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo oferece gratuitamente os PEMC (Programa de Educação Médica Continuada) realizados em várias Delegacias Regionais do Estado.
Portanto, a ruptura súbita desse arcabouço legal, foi causa das manifestações contrárias do CFM e dos CRM. A Medida Provisória 621/2013, transformou-se na Lei nº 12.871 de 22/10/2013, que institui o projeto “Mais Médicos” dentre outras finalidades. É uma lei de aplicação e regulamentação complexas, como uma grande carta de boas intenções. Além de liberar a entrada de médicos estrangeiros sem o REVALIDA, para atender o déficit imediato de médicos no atendimento primário, também altera o arcabouço legal da formação médica, facilitando a criação de novas faculdades e ampliando programas de residência médica, definindo objetivos muito além da capacidade de absorção da infraestrutura existente e de material humano docente capaz de atingi-los nos prazos estabelecidos. Não creio que os programas atuais de pós-graduação na área médica sejam capazes de fornecer docentes e pesquisadores para fazer-lhes face. Sem discutir o déficit escabroso, em número e qualidade, das nossas instalações hospitalares, das unidades básicas de saúde e das unidades de pronto-atendimento.
Na aplicação da lei o Governo Federal começou pelo atendimento primário através do “Projeto Mais Médicos”, que credencia médicos estrangeiros, sem revalidação do diploma, com retribuição pecuniária sob a forma de bolsa. A Constituição Brasileira diz que a saúde é um direito do Cidadão e dever do Estado. O SUS prevê que o dever do Estado faz-se através desse atendimento desde a consulta inicial (atendimento primário) na Unidade Básica de Saúde (UBS) – antigo Posto de Saúde – até o atendimento terciário em hospitais de alta complexidade.
Os porta-vozes do Governo avançam contra os médicos pela resistência em atender esses empregos. Ninguém em sã consciência pode ser contrário ao objetivo de levar o atendimento médico a todos os brasileiros em todos os rincões da Pátria. Mas, a questão não pode ser tratada de forma simplista, nem com desdém. Já houve governador de estado, que considerou “médicos são como o sal de cozinha, branquinhos, baratos e são encontrados em qualquer esquina”. A atração dos médicos para o atendimento primário envolve muito mais do que a simples presença física na UBS e a questão salarial. Muitos “pacientes” irritam-se a ponto de chegar ao limite da agressão física, cansados de esperar consultas, que deveriam se estender por tempo ilimitado, mas são geralmente rápidas e pouco resolutivas. Quem já atendeu sozinho um ambulatório cheio de pacientes ansiosos pela moléstia que os aflige, que explodem quando precisam de internação, mas não há vagas hospitalares, certamente hesitará em se expor, se puder encontrar outro caminho.
            Já foi sugerida a criação da Carreira de Estado para o médico do Serviço Público, com o que ele pode ser designado para qualquer local com a perspectiva de um horizonte de carreira. A hora não é de disputa político-ideológica. É hora de organizar-se a Sociedade como um todo, identificar as causas e procurar caminhos, que levem a soluções definitivas. Culpar uma classe e improvisar soluções não leva a lugar nenhum.
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JOSÉ ALBERTO MELLO DE OLIVEIRA é Delegado Superintendente Adjunto da Delegacia de Ribeirão Preto do Cremesp e Professor de Patologia (aposentado) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e da Universidade de Ribeirão Preto.





19 fevereiro 2014

TODOS CERTOS...TUDO ERRADO!

TODOS CERTOS...TUDO ERRADO!
                                                                                      
                                                                                                ISAC JORGE FILHO

                   Em seu consultório particular o médico foi procurado por uma pessoa que referia fortes dores no abdome e considerável emagrecimento. Proveniente de cidade da região já tinha feito, através do sistema oficial de saúde, uma série de exames sem que se chegasse à nenhuma conclusão a respeito do mal que o afligia. Depois de ouvi-lo e examiná-lo atentamente, o médico solicitou alguns exames que a família, mais uma vez somando seus esforços, conseguiu bancar. Os resultados foram extremamente preocupantes: era grande a suspeita de uma doença maligna. O que fazer? Os passos seguintes eram muito dispendiosos: exames mais especializados, internação e possível operação de grande vulto. A família não tinha como fazer frente aos gastos. O médico se dispôs a ajudar. Entrou em contato com colega do Hospital das Clínicas buscando uma vaga para internação e provável operação. O colega teve a maior boa vontade, mas não tinha vagas, até porque o número de vagas havia sido diminuído recentemente. Procurou vaga na Santa Casa, um hospital filantrópico, conveniado com o sistema de saúde oficial. A boa vontade também estava presente, mas havia um problema muito sério. A previsão de gastos com o tratamento do paciente superava, em muito, o que seria pago pelo sistema oficial, e isto, somado a outros casos do mesmo tipo, ajudava a colocar em risco a própria viabilidade do hospital. Ainda assim, a internação foi feita. 
                   Em todo esse drama humano, vale analisar o comportamento dos protagonistas. Quem agiu certo? Quem agiu errado? É claro que agiram corretamente: a família, que procurou todos os meios ao seu alcance para garantir o melhor atendimento ao paciente; os médicos da cidade menor, que procuraram, dentro das limitações tecnológicas encontradas, chegar a um diagnóstico correto; o médico particular, que teve a sensibilidade de pessoalmente procurar recursos de alto nível levando em conta a falta de condições econômicas do paciente; o médico do Hospital das Clínicas, que se dispôs a ajudar, desde que houvesse vaga; os médicos do hospital filantrópico, que internaram e cuidaram, de modo praticamente gratuito, do doente; e o hospital filantrópico, que, fazendo jus a seu título, possibilitou a internação, mesmo sabendo que seria deficitária.             
Enfim, todos estão certos. Mas, nessa história, tudo está errado. Que tipo de sociedade estamos construindo, que opõe tantas dificuldades às pessoas doentes e carentes de recursos? Que tipo de sociedade é esta em que, ao invés de aumentar, diminui, em relação ao crescimento da população,  o número de vagas de um hospital de valor e importância crucial como o nosso Hospital das Clínicas? E que reserva, para hospitais que lutam com dificuldades, pagamentos insuficientes para cobrir seus gastos e continuar servindo a esta mesma sociedade? Que reserva remunerações aviltantes a profissionais responsáveis pelo nosso principal patrimônio, que é a saúde?
                   O pior esse relato não é uma suposição, mas caso real e que, infelizmente, tem se repetido ao longo dos anos.

                   É preciso rever tudo isso. Uma situação em que todos estão certos e tudo está errado merece análise profunda, se queremos construir uma sociedade mais justa e humana.
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17 fevereiro 2014

O REINO DA ENGANAÇÃO



O REINO DA ENGANAÇÃO
 
                                                                 
ISAC JORGE FILHO

         Na semana passada, ao pegar um envelope com açucar, li com surpresa o que ali estava escrito: “açucar orgânico-100% natural-lipídios totais 0%- ecologicamente correto”. Fiquei pensando a respeito da facilidade que algumas empresas encontram para, impunemente, enganar os consumidores menos avisados. Basta usar algumas palavras “mágicas” e tudo se torna mais fácil. Uma delas é que o produto é natural, como se tudo o que fosse natural fizesse bem. É bom lembrar que venenos de plantas foram, ao longo da história, usados como forma de matar os condenados. E eram naturais. Há alguns anos uma planta (confrei) foi utilizada, como moda, para tratamento de muitas doenças; estudos posteriores mostraram que ela pode, isso sim, determinar sérias doenças hepáticas. Não se quer, com isso, tirar o valor de muitos produtos naturais, mas evitar o risco da generalização. Existem produtos naturais bons, produtos naturais inertes e produtos naturais prejudiciais.
         Outra palavra “mágica” é o “laser”. Criou-se a balela de que se alguma coisa é feita com laser ela é muito boa. Inventaram até que a cirurgia vídeo-laparoscópica, indiscutível avanço na arte de operar, é uma “cirurgia à laser”. São muitos os pacientes que procuram seus médicos para fazer “a cirurgia da vesícula à laser”. O termo deve ter sido criado por algum médico muito “espertinho”, que queria impressionar o paciente dizendo que a cirurgia era “à laser”. Se tivesse dito a verdade seria mais honesto e, além disso, não é difícil mostrar que a vídeo-cirurgia é muito mais impressionante que o laser. Este último é importante em várias situações, mas em cirurgia digestiva é um recurso a mais para cortes cirúrgicos.
         São inúmeras as palavras “mágicas”, como “ecologicamente correto”, “modernidade”, “globalização”, etc. As pessoas ficam realmente impressionadas. Na maioria das vezes não passam de rótulos para enganar o consumidor. Um famoso refrigerante, até algum tempo atrás, tinha na tampinha da garrafa, escrito: “contém trimetilxantina”. As pessoas achavam que isso era muito importante. E não era mentira, a bebida contém mesmo trimetilxantina, mas se colocassem que se tratava da cafeína, que tomamos no café de todos os dias, não ia ficar tão importante.
         Mas, essa do “açucar orgânico” foi demais. Como se outras marcas oferecessem “açucar mineral” e contendo lipídios. Enfim, no reino da enganação comercial parece que vale tudo. E fica por isso mesmo. Quanto ao consumidor, parece que pensam que é apenas um detalhe, simples máquina de comprar. 
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ISAC JORGE FILHO é Médico, Membro da Comissão Permanente de Ética e Bioética do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e Ex-Presidente do Cremesp.

O "TROTE" E A RESPONSABILIDADE ÉTICA DOS FUTUROS MÉDICOS.

O “TROTE” E A RESPONSABILIDADE ÉTICA DOS FUTUROS     MÉDICOS 
                                                                                             
 ISAC JORGE FILHO
                        É um espetáculo deprimente que se repete a cada vez que são divulgados os resultados dos vestibulares. Futuros médicos assumem papéis lamentáveis e recebem seus novos colegas com calorosas manifestações...de selvageria. O que devia ser momento de alegria pela recepção dos novos colegas se transforma em manifestação bestial de desamor ao próximo. As notícias resultantes dessa “recepção” frequentemente são trágicas: é o calouro que morreu afogado, é o outro que ficou cego, é o que sofreu trauma craniano, é o que teve queimaduras pelo corpo... é um circo de horrores perpetrados pelos que deviam ser a elite cultural do país. E estamos falando de jovens que tiveram o privilégio de serem universitários em meio a analfabetos e semi-alfabetizados. Que fazem parte daqueles que receberam mais, em um país onde a regra é receber menos. A mídia tem divulgado o aumento do número de vagas ocupadas por pessoas mais ricas nos vestibulares de faculdades públicas, mostrando o agravamento da concentração de renda. 
            A origem do termo tem interessante simbolismo.  Classicamente o trotese refere a  certa forma de movimentação de cavalos, situada entre o passo e o galope. É processo que deve ser ensinado, muitas vezes por meio de chicote e espora. Lamentavelmente é dessa maneira que o calouro é encarado, em muitas universidades, pelo veterano. A título de “confraternização”, ele deve ser “domesticado” por meio de práticas humilhantes e vexatórias, geralmente estimulado por grandes quantidades de bebidas alcoólicas que é obrigado a ingerir, para que simbolicamente “aprenda a trotar”. Por incrível que pareça ainda existem defensores do trote, que querem dar a ele a função de rito de passagem ou ritual de iniciação, sendo método para promover a lealdade e a camaradagem do grupo por meio do sofrimento compartilhado, o que criaria um vínculo entre calouros e veteranos.
            Não é assim que deve começar a formação de um médico. Não é assim que deve um universitário, como cidadão, fazer suas manifestações de agradecimento ao sacrifício de muitos para que poucos cheguem à universidade. Os que aí chegam devem ser exemplos de cidadania e não de violência. 

            Temos proposto uma campanha nacional pela abolição do trote e substituição por recepção civilizada e social ao novo universitário, que já diferencie aqueles que alguns anos depois vão jurar exercer Medicina ética, com zelo e respeito pelos pacientes e pelos colegas. Pouca gente se preocupa com esta proposta. Continuam vendo, passivamente, futuros médicos embriagados participando, forçados ou não, da celebração das diferenças sociais, já que uma das atividades “clássicas” do trote é pedir moedas em esquinas, ocupando o lugar dos infelizes que, lamentavelmente, vivem dessas esmolas.
            Questionadas a respeito algumas diretorias de faculdades tem respondido argumentando que o trote está proibido dentro de seus “campi”. É bom, mas ainda é pouco. É o mesmo que admitir que, depois de formado, o médico possa cometer barbaridades, desde que não seja no hospital, ambulatório ou consultório. 
            A maioria dos calouros é contra esse tipo de trote, mas acaba sendo suplantada pela minoria que o admite porque espera, com ansiedade, o ano seguinte para a “vingança”. 
            É fundamental que a categoria médica reconquiste o respeito da população. Não se pode esquecer que o calouro é o futuro médico e o trote selvagem não é maneira correta de se começar o preparo para uma profissão que lida com vida, saúde e ética.
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           ISAC JORGE FILHO é Médico, Membro da Comissão de Ética e Bioética do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Coordenador do Departamento de Bioética e História da Medicina do Centro Médico de Ribeirão Preto e Ex-Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.