27 maio 2007

TOMBAMENTO E A PROPRIEDADE PRIVADA


Sérgio Roxo da Fonseca

A juíza Lúcia Valle Figueiredo, em sede de doutrina, provocou um interessante debate sobre a natureza jurídica do tombamento de bens particulares quase sempre tendentes à proteção ambiental ou cultural (Disciplina Urbanística da Propriedade, São Paulo Editora Revista dos Tribunais, 1980).
Há um conceito provisório: o tombamento é uma injunção pública, autorizada por lei, editada em direção do exercício do direito da propriedade pública ou privada, com a finalidade de expropriar este direito ou restringir o seu exercício.
Tendo o enunciado como ponto de partida, tem-se que o tombamento tem dupla face jurídica: a) ou representa o deslocamento do bem privado para o domínio público, b) ou significa uma contração no núcleo do direito de propriedade. O tombamento assim ou elimina o direito de propriedade ou restringe o seu exercício, sem eliminá-lo. “Tertium non datur”.
Na primeira hipótese, o tombamento é o mesmo que a desapropriação, seguindo, pois o procedimento para ela definido por lei. Neste sentido, o tombamento não é gênero jurídico quando se apresenta como desapropriação. Se o ato administrativo for uma desapropriação, será uma desapropriação, e não será tombamento. Daí se extrai que o conceito antes enunciado está pelo menos parcialmente errado. Se o tombamento confunde-se com desapropriação ele é desapropriação e não tombamento. Se Pedro é Pedro, Pedro não pode ser Antônio, conforme rege o princípio da identidade lógica. Se o ato reflete desapropriação, não pode refletir tombamento. Uma coisa é uma coisa e não outra coisa. Também na ciência jurídica.
O desastre também está instalado na segunda hipótese do enunciado, quando se diz que o tombamento pode ser um ato administrativo que tem como finalidade restringir o direito de propriedade – sem eliminá-lo.
O ato administrativo, que se converte numa ordem restritiva do exercício do direito de propriedade, tem o nome de servidão administrativa. Servidão administrativa é o ato administrativo suscetível de constranger parcialmente o exercício do direito de propriedade, com autorização legal.
A expressão “servidão” foi apropriada da área do Direito Civil, mas não se confunde com as servidões civis. É possível que um bem público seja favorecido por uma servidão regida pelo Código Civil, mas não é disso que aqui se trata.
Na servidão administrativa não existe uma relação de direito real, que vincula o proprietário do prédio dominante com o prédio serviente. Como foi dito, o Direito Administrativo apropriou-se da expressão sem comprometimento semântico. Digamos, por uma distante analogia.
A servidão administrativa espelha a existência de um interesse público dominante sobre um interesse privado serviente que impõe a contração do direito de propriedade. A proibição de construir mais alto (“non altius tollendi”) que recai sobre imóveis localizados nas proximidades de aeroportos, quartéis e sítios históricos, configura uma servidão administrativa. Os proprietários desses imóveis sofrem dano patrimonial, com relação a outros mais distantes cujos donos estão autorizados a construir prédios que arranham os céus. O pagamento da indenização resulta do princípio da justa distribuição da carga pública que, por sua vez, é derivado do postulado da igualdade constitucional.
Considera-se também como servidão o dever de suportar a fixação de placas indicativas de nome de logradouros públicos nas paredes de determinados prédios, especialmente aqueles localizados nas esquinas e cruzamentos. Os proprietários desses prédios não sofrem dano patrimonial.
Tanto a desapropriação como a servidão geram direito à indenização quando o proprietário for obrigado a suportar uma perda considerável, mesmo quando um ou outro ato administrativo venham cognominados de tombamento. O conceito provisório oferecido no início deste trabalho está redondamente errado.
Conclui-se assim que: a) o tombamento quando elimina o direito de propriedade na verdade é uma desapropriação; e que b) quando contrai o direito de propriedade é uma servidão administrativa. Portanto, não existe tombamento, ou melhor dizendo, não existe juridicamente um gênero específico passível de ser conhecido por este nome.
No domínio do Direito Público pouca importância tem o nome pelo qual uma entidade é batizada ou pela lei ou pela doutrina. As entidades não são reconhecidas pelo nome recebido na pia batismal, mas, sim, pelos efeitos causados a terceiros. O tombamento, muito embora tenha um nome que lhe dá fumos de nobreza coimbrã, na verdade não tem natureza jurídica, razão pela qual se trata de um dos vários fantasmas a habitar falsos castelos administrativas.

Professor das Faculdades de Direito da UNESP/Franca e COC/Ribeirão Preto. E-mail: roxodadonseca@convex.com.br

20 maio 2007

O FUNDO DO POÇO

ISAC JORGE FILHO *

A mídia acaba de divulgar um dos fatos mais tristes e desalentador dos últimos tempos. Passou quase desapercebido e, por isso mesmo, é preciso que se grite a indignação que toma conta de todos os que leram com atenção ou ouviram com ouvidos de quem quer ouvir, entender e se manifestar, e que se analise as causas e as conseqüências desse violento crime cometido contra a sociedade, a ética e a eqüidade neste País.
Quando jovens se prostituem, o sentimento de tristeza é imenso. Quando esses jovens estão entre os melhores alunos de universidades brasileiras e, portanto, representam a esperança maior de um Brasil mais justo e honesto, a sensação é de que se chegou ao fundo do poço. Afinal é na juventude, e especialmente na Universidade, que se concentram os mais ricos sentimentos de idealismo e de justiça.
No último 31 de abril, a Polícia Federal, em operação chamada “vaga certa”, prendeu sete pessoas suspeitas de vender vagas em universidades públicas e privadas em pelo menos cinco estados brasileiros (Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Paraná) ao preço que variava de 25 a 70 mil reais. Até aí não é novidade. Já sabíamos, e lamentávamos, da existência de compra de questões de provas e de resultados finais. A novidade é que o processo agora descoberto, era realizado, há alguns anos, com a participação de “pilotos”, universitários qualificados entre os melhores alunos, que recebiam de 5 a 6 mil reais para fazer provas em nome de outros, usando carteiras de identificadas falsificadas. O variava de acordo com o conceito e importância da Faculdade A participação de jovens vendendo seu conhecimento para fazer vestibular em nome de outros foi o fato mais marcante da operação “vaga certa”.
Era de se esperar uma reação enorme por parte da mídia e da sociedade com a revelação de fato tão grave. Não houve. Parece que as pessoas estão anestesiadas e que os conceitos de ética, moral e justiça se tornaram absolutamente abstratos, ou modificando um pouco o que lamentou certa vez o saudoso Mário Covas: “Vivemos um tempo em que ser ético é sinônimo de ser ingênuo”. É tempo dos “espertos”. A lei de Gerson já foi superada pela lei de Zéca Pagodinho que, publicamente se dirigiu ao Ministro Temporão, que fizera um apelo no sentido de que artistas não se prestassem a vender sua imagem para estimular o uso de bebidas alcoólicas, e respondeu grosseiramente, dentro de sua “ética” particular, que o Ministro cuidasse das máquinas estragadas das unidades de saúde e o deixasse ganhar seu dinheirinho. É isso aí. E ainda tem quem ache que Ética é coisa só para Médicos.
Deixando a gravíssima transgressão ética vale analisar algumas conseqüências do vestibular feito pelas “cabeças de aluguel”. Quem pode pagar o preço cobrado pela vaga certa? Não estaria havendo com isso maior distorção social nas oportunidades para cursos universitários? Há quanto tempo isso ocorre? Quantos profissionais estão exercendo suas atividades sem sequer terem prestado exames para ingresso nas faculdades? Não é realmente necessária uma avaliação externa do produto de nossas faculdades antes que iniciem o exercício profissional? Alguém vai dizer que ao longo do curso essas pessoas passarão por provas e, se não forem capazes, não terminarão sairão das faculdades. Seria assim se as universidades reprovassem com o rigor necessário. Como regra, poucas vezes isso parece acontecer e, quando ocorre, entra em ação uma nova figura na formação universitária: o reprovado entra na justiça para anular sua reprovação e freqüentemente consegue. O pior, geralmente são os pais que entram com os recursos contra a reprovação do “filhinho injustiçado”. Tudo isso sem contar a secular figura da “cola” que leva a aprovação de muitos incapazes.
Já é antiga uma piada que falava de uma faculdade na qual era tão fácil ingressar que acabava aprovando também o motorista do ônibus que levava os candidatos. Hoje não é mais piada, não é o motorista do ônibus e não são só as faculdades fáceis. Com o uso das “cabeças de aluguel”, verdadeiros semi-analfabetos , portadores de certificado de conclusão do secundário, podem ingressar faculdades e, com recursos desonestos ou mandados de segurança, podem terminar seus cursos.
Quem perde?
Os alunos capacitados perdem suas vagas e a comunidade perde bons profissionais. Mas, quem mais perde é o País que, com a revelação das prostituídas “cabeças de aluguel”, vê a Ética e a Esperança caminharem para o fundo do poço.
Que Deus nos proteja!

* Médico, Doutor em Cirurgia e Coordenador da Comissão de Pesquisa e Ensino Médico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

02 maio 2007

JOGOS PANAMERICANOS:LEIA E OPINE

O Professor de Educação Física Homero Blota encaminhou, via Juca Kfouri, carta aberta a Carlos Nuzman com graves denúncias ligadas à organização dos Jogos Panamericanos no Rio de Janeiro.

Leia o texto completo em http://blogdojuca.blog.uol.com.br/ publicado em 18/04/07 e envie-nos seus comentários.

01 maio 2007

AS GRAVATAS DO RABINO

Sérgio Roxo da Fonseca**

Devoto pública admiração ao Rabino Henry Sobel. Devoção que ganhou nova grandeza com o episódio da subtração das gravatas. Não por causa da subtração em si, mas pela sua pública confissão. Transgredir todos nós transgredimos. Poucos são aqueles que têm a grandeza de reconhecer a sua própria fragilidade.
Nós homens criamos pautas de conduta que, se obedecidas por todos, seria possível conquistar a paz individual e social. Trata-se, como se vê, mais de uma questão de fé do que de ciência. Trata-se de uma crença que vem comendo o fígado de Prometeu e alimentando os desvarios do D. Quixote.
Dois filmes trataram do assunto. Um francês e outro americano. O francês foi criação de André Cayatte, que recebeu o nome de “Somos todos assassinos”. O outro, tirado de um romance de Capote, foi denominado “A sangue frio”. Os dois filmes sustentam o seguinte: ao aplicar a pena de morte as autoridades públicas assassinam a sangue frio, ao contrário dos criminosos que quase sempre matam a sangue quente.
O grande Ministro Nelson Hungria, que engrandeceu o Supremo Tribunal Federal, dizia que até mesmo ele e seus colegas cometiam transgressões, pequenas, decerto, mas transgressões, como, por exemplo, levar canetas do Tribunal para casa. O exemplo é dele.
Quase todos nós, por culpa ou desculpa, já fomos multados por excesso de velocidade. Corremos gravíssimo risco de matar ou aleijar nossos parentes e não parentes. Arrogantemente, confessamos o nosso desatino, quase sempre, para reclamar das autoridades que, pela multa, reclamam da nossa falta de juízo. A moral não condena o mau motorista tal como condena o crime contra o patrimônio..
No nosso sistema jurídico e moral é muito mais grave furtar gravatas e cometer delitos sexuais do que matar pessoas como resultado da nossa misteriosa e incontida compulsão em violar regras de trânsito.
O desembargador Celso Limongi, em aula magna professada recentemente em Ribeirão Preto, narrou-nos um caso exemplar. Na rodoviária de Franca, um rapaz tocou o seio de uma moça num gesto semelhante ao recentemente cometido pelo futuro rei da Inglaterra. A moça pediu socorroe o rapaz foi preso em flagrante. Bem feito. Nos autos apurou-se que ela era menor de 14 anos e ele, casado: crime hediondo. Pena a ser aplicada: onze anos e meses, quase doze.
Ou em grau de apelação ou de habeas corpus, o caso foi apreciado pelo Tribunal de Justiça que manteve a pena por nove votos a um. O voto isolado foi o do Desembargador Celso Limongi, hoje Presidente do Tribunal.
A condenação foi lastreada na lei? Sim. A condenação foi justa? Não. É possível ocorrer condenações legais e injustas? Sim, muitas. Como resolver? O juiz não é o operador da lei, mas, sim, do direito. O direito é um domínio muito mais amplo do que o da lei que é a principal província dele. O juiz pode corrigir a lei no caso concreto, calibrando-a segundo as regras do direito. Assim determina o mais moderno conhecimento da ciência jurídica.
No passado remoto, um outro rabino, o Mestre da Galiléia, na iminência de ver uma prostituta lapidada pelos puritanos, convidou o mais puro deles para lançar a primeira pedra. O registro histórico afirma que todos lançaram ao chão as pedras que já tinham nas mãos e foram talvez caçar sapo com bodoque, esporte para o qual não se reclama nem juízos éticos e muito menos jurídicos.


**Professor das Faculdades de Direito COC-Ribeirão Preto e UNESP-Franca. E-mail: roxodafonseca@convex.com.br