26 maio 2017

BERNARDINO SORVETEIRO - Sérgio Roxo da Fonseca

BERNARDINO SORVETEIRO

                        Sérgio Roxo da Fonseca

            Tenho perguntado aos meus contemporâneos qual seria o instrumento de sua memória que documenta o período da nossa infância. Inclusive aqueles que nem mais residem em Ribeirão Preto.Quase sempre elegem o sabor do sorvete de leite feito pelo Bernardino.
            A experiência lembra o extraordinário “Em Busca do Tempo Perdido” tendo em conta que Proust registra que escreveu o seu extenso romance após ter uma experiência semelhante. Ao tomar um chá de tília acompanhado com uma madalena, biscoito francês, sua memória, por conta do sabor, abriu as portas do seu passado, transportando-o, inicialmente, a sua infância, quando então narra a primeira parte do seu longo trabalho sob o título de “No Caminho de Swann”.
            Anoto que Sérgio Buarque de Hollanda, após aplaudir o trabalho do tradutor brasileiro, Mário Quintana, criticou a tradução por ele dada ao título, que lhe parece que teria recebido a influência da tradução inglesa, “Swann’s Way”. Proust batizou a narrativa com o nome de “Du côté de chez Swann". Buarque de Hollanda observa que o autor não quis, com o título, fazer a indicação geográfica da casa de Swann, mas, sim, transformá-lo no símbolo individualista da nova França. Portanto, a melhor tradução seria “Na direção de Swann”, ou seja, na direção da nova França.
            Seria possível transportar a lição de Buarque de Hollanda para a época em que terminava a Segunda Grande Guerra, dias nos quais fomos para a primeira escola em busca da alfabetização?O sorvete no lugar de Swann?
            Com autorização médica, resolvi buscar resposta à indagação intrigante. Fui ao meu atual sorveteiro e consultei que sorvete é o tal do sorvete de leite. Respondeu-me que era o sorvete de nata. Desenvolvi a minha pesquisa pedindo uma casquinha. Para minha surpresa, o sorvete de nata pouco ou nada o sabor do sorvete de leite que guardo na memória. Há razão para isso?
            A resposta foi positiva. O sorvete de leite era feito com leite não pasteurizado. O sorvete de nata com leite pasteurizado. Este segue o caminho dos novos tempos. Aquele indica um caminho guardado nos escaninhos da memória. Não há mais o sorvete de leite natural. É proibido usar leite natural porque hoje transmite doenças que não existiam então. Ou se existiam não causavam tanto mal como “espinhela caída”, esta sim atemorizava multidões.

            Curiosamente, o sabor do passado permanece na nossa memória, tanto que ainda conseguimos realizar o diagnóstico diferencial entre um sorvete e outro, mesmo depois de passados mais de setenta anos de caminhadas pelas veredas e pelas não-veredasque nos levam tanto ao passado quanto às sorveterias. . Ainda temos memória para identificar a individualidade daquele antigo sabor mesmo reconhecendo que o manto escuro do silêncio começa a descer sobre os novos e os antigos passos. Por que o sabor do chá de tília levou Proust a escrever um romance com sete livros? Por que o sabor do sorvete de leite do passado encontra-se ainda oculto na memória já cansada dos seus contemporâneos?  Ou será que aquele tempo não está perdido, podendo ser recuperado?  Difícil identificar a ponte que liga o hoje com o ontem que se nega a passar. Que a ponte não seja destruída. Ou pelo menos que suporte outros dias qualificados pelos tantos sorvetes do passado e do presente.

15 maio 2017

PEQUENA HISTÓRIA DE MEU PRIMEIRO DIA DAS MÃES

PEQUENA HISTÓRIA DE MEU PRIMEIRO DIA DAS MÃES

ISAC JORGE FILHO

                        Nos meus primeiros nove anos vivi em uma vida de cidade pequena e encantadora,  pouco mais que rural. Em 1952 meus pais decidiram enviar-me para um colégio de conceito maior que a pequena “Escola da Dona Zezé” que ficava na garagem de sua casa. O destino seria o famoso Instituto Gammon, em Lavras, distante de Monte Carmelo o suficiente para consumir 28 horas de viagem pela Rede Mineira de Viação – RMV (que nós chamávamos de “Ruim Mas Vai”, com duas baldeações, em Ibiá e em Garças de Minas). Apesar dos apelos do Padre César para que não me enviassem para “estudar protestantismo” fiz meus 10 anos em Março no Colégio Evangélico de Lavras, um Internato sem guardas e com alto respeito à autonomia, ligado a um respeitável grupo evangélico norte-americano, proprietário também da Escola Superior de Agricultura de Lavras (ESAL, hoje instituição pública federal). Foi lá que tive conhecimento do “Dia das Mães”, celebrado nos Estado Unidos desde 1865 pela ativista Ann Maria Reeves Jarvis com o nome de “Mother’s Friendship Days (Dia de amizade pelas Mães) com o objetivo de melhorar as condições dos feridos na Guerra da Secessão. Vale lembrar que a idéia de cultuar as mães não era nova. Segundo a Enciclopédia Britânica a comemoração mais antiga para o Dia das Mães vem da Grécia antiga, que na entrada da primavera homenageava Cibele ou Rhea, a grande Mãe dos Deuses.
A forma atual do Dia das Mães se deve aos esforços da filha de Ann Maria, a metodista Anna Jarvis, que iniciou uma campanha para que o Dia das Mães fosse reconhecido como um feriado nacional. Após Resolução, assinada pelo Presidente dos Estado Unidos  Thomas Woodrow Wilson,  o primeiro Dia das Mães foi celebrado em 9 de maio de 1914.
Já o meu primeiro dia das mães se deu em maio de 1952 em um culto no qual os internos que tivessem suas mães vivas usavam na lapela uma flor vermelha, símbolo da paixão,  e aqueles que tivessem tido a infelicidade de ter perdido suas mães portavam a flor branca da saudade. A emoção era grande, independente da religião professada pelo estudante, mas ficou ainda maior quando um aluno,  de nome Leandro e de flor branca na lapela, declamou a seguinte poesia:
“MÃE
Nome sagrado,
Que a gente mal em palavras traduz.
Que, com três letras somente,
É maior, mais reluzente, do que o céu cheio de luz.

Nome que é sempre o mais doce
de todos os que a gente aprendeu.
Por mais humilde que fosse, ele que ao mundo nos trouxe
Ele que a vida nos deu.”
Nunca soube quem foi o autor desses versos, nem porque guardei-os em minha memória por tanto tempo. Mas é assim que vejo o “Dia das Mães”,  com essa pureza quase infantil.
É pena que a enorme difusão e comercialização da data tenha mudado tanto seu significado, a ponto de levar sua criadora –Anna Jarvis – a afastar-se do movimento, lamentar sua criação e lutar pela abolição do feriado nos Estados Unidos.
Quanto a mim, continuo desejando para as mães de todo o mundo uma data que represente o espírito existente naqueles versos que meu colega leu em 1952.
Acredito que devemos lutar por um mundo em que impere esse amor materno que envolve sem preconceitos todos os irmãos. É também uma homenagem ao Leandro.

............................................................................................................................................................................................

06 maio 2017

BALAS PERDIDAS - José Anézio Palaveri

Crônica da aldeia global
                  Balas perdidas
                                                Reflexões sobre violências banais e o medo social.
            Mortes violentas e guerras urbanas nos assustam.
            Morrem muitos marginais, muitos bandidos, muitos policiais, muitos cidadãos comuns, pais de família ou jovens em busca de lazer...
            Há regiões em que viver se tornou muito perigoso neste grandioso e querido Brasil.
            Disputas entre quadrilhas, policiais em perseguição, tráfico de drogas nas favelas ou fora delas. Mortes em festas, em bares, na calada da noite ou sob as luzes do dia...
            Quantas energias dispersas e consumidas sem sentido!...
            Guerras e guerrilhas, mortes anunciadas por estatísticas assustadoras.
            O nome nos assusta e nos engana. A polícia ativada contra supostos bandidos, traficantes ou outros que tais. E o morador é atingido e crianças são mortas... Balas perdidas!...
            Que azar! Foram vítimas de balas perdidas, segundo investigações nunca esclarecidas e que nunca convencem os moradores da região da tragédia. E as cenas se repetem. Por dias seguidos ou por semanas, mortes de indefesos moradores são anunciadas, pessoas distraídas que perambulam cruzando os caminhos das balas..
            Ou são as balas mal endereçadas que cruzam os seus caminhos?
            Há muitas explicações que não convencem e que quase ninguém questiona. No dia seguinte, as mortes voltam a acontecer e as estatísticas de cidadãos mortos sem explicações nos assustam e muitos policias também são vítimas de ações de violência que acontecem sem que nenhuma medida preventiva inteligente ou planejada seja tomada.
            E isto tudo acontece em cidades maravilhosas, em bairros, em favelas e até em  bairros mais chiques por onde a violência passeia, onde morrem, com frequência, cidadãos, quase sempre os mais pobres. E onde também morrem policiais com uma frequência assustadora.
            Uma guerra sem vencedores... Acontece mesmo sem ser declarada...
            E que parece não terminar nunca.
            Clamamos por mais preparo dos policiais, pelo uso de outras ações de inteligência e de menos munições.
            As imagens são de esposas chorando as perdas de seus filhos e maridos... e  de uma população assustada e sem esperanças.
            E sabemos que tudo poderia melhorar se os responsáveis tomassem consciência da importância de ações preventivas, da melhora de condições de vida da população, das condições de trabalho dos policiais e de seu melhor preparo para ações sem violência.
            Quantas miséria e dores envolvidas! Os traficantes de drogas, suas quadrilhas  desafiam nossa segurança e as forças policiais. Eles destroem as cidades, incendeiam ônibus para mostrar seu poder e amedrontar a população. E nós, apavorados, vamos tentando nos esconder...
            Mas o poder público não pode se omitir. Tem que se preparar melhor...
                                   Dr. José Anézio Palaveri, médico, APLACE, maio de 2017.
           
            

CIDADES E RUAS - Sérgio Roxo da Fonseca

         CIDADES E RUAS

                   Sérgio Roxo da Fonseca

         As ruas das nossas cidades mais antigas foram abertas livremente de conformidade com o interesse individual de seus moradores. Quase sempre são tortuosas como os tortuosos eram os caminhos anteriores à sua urbanização.
         No início do século XX, o Brasil e o mundo foram fortemente influenciados pela França. As cidades passaram a ter um desenho cartesiano, muitas vezes com quarteirões quadrados e iguais. Os edifícios tinham, quase sempre, cinco andares, como Paris. Por volta de 1950 consegui minha aprovação como piloto de monomotor. Os nossos aviões voavam em francês. Todas as cidades grandes passaram a ter uma avenida copiada de Paris, como a Avenida Rio Branco do Rio de Janeiro.
         Da segunda metade do século XX até hoje passamos a sofrer a influência determinante dos Estados Unidos. Os nossos aviões voam hoje em inglês. Os edifícios são desmesuradamente altos. A concentração de habitantes por metro quadrado multiplicou-se. Há mais automóveis nas ruas do que almas no purgatório. Pudera, a aquisição da cidadania é documentada hoje pela compra de um automóvel. Conheço uma cidade com trinta mil habitantes que se orgulha de ter um edifício tão alto que deve causar inveja aos nova-iorquinos. Há outras que constroem arranha-céus no meio de pastos inabitados.
         Há cidades verticais e outras horizontais. O Rio de Janeiro, cercado de morros e mar, é vertical. Pede edifícios altos. Paris, Brasília e Ribeirão Preto são cidades horizontais e pedem edifícios mais baixos, evitando a desnecessária concentração de pessoas e serviços.

         Tendo em conta o grande crescimento da população urbana, especialmente com o êxodo rural, influenciado pela sua mecanização, a disciplina do crescimento urbano se impõe, especialmente com referência à ocupação do espaço para que a convivência humana não se transforme em prenúncio do inferno.