09 setembro 2020
O COMANDO DAS MÁQUINAS José Anézio Palaveri APLACE
O COMANDO DAS MÁQUINAS
"Colocar humanidade em nossas vidas".
Éramos os senhores do mundo. Será que não perdemos lideranças, poderes, espaços, capacidades para dar rumos a um mundo da maneira que desejamos?
Entramos no ritmo das máquinas. É perigoso. Elas são de ferro, poderosas, motores resistentes, possantes, empurram toneladas sem se cansarem.
Elas nos comandam e roubam nosso precioso tempo.
Como você se relaciona com seu celular? Ele facilita sua vida ou rouba seu tempo com os contatos inesperados, imprevisíveis em momentos importantes de sua vida em que você deixa de fazer o que está fazendo?
E as televisões cuja programação comanda nosso ritmo de vida?
O telefone toca. Insiste, você precisa atender se não quiser irritar-se com o persistência da chamada. E se você não atender ficará preocupado. Quem será que ligou? Seria algo importante, alguém doente? O mau uso dele prejudica seu bolso e seus ouvidos...
Suas conversa particulares, seus contatos, são interrompidos, a qualquer hora. As chamadas, os barulhos, interrompem nossas vidas.
Depois eu ligo! Estou cuidando de meu nenê, amamentando meu filho! Seria algo importante? E a cabeça fica cheia de preocupações...
‘ De novo? Estou rezando...
Estou concentrado, ouvindo as lamentações de uma pessoa conhecida e a campainha toca. Toca, toca, insiste. Preciso interromper o diálogo para não ficar surdo.
O médico atencioso, concentrado, ouvindo as lamentações do paciente...Doutor, telefone! E a concentração se quebra... O paciente estava se desabafando e foi interrompido...
Um distração atrás da outra...
E as reflexões? Muito barulho atrapalha. Até as buzinas dos carros nas ruas incomodam conversas importantes.
As máquinas fazem quase tudo. Podem facilitar nossas vidas, nossas viagens... Não podemos ser escravos delas. Elas precisam facilitar nossas vidas e serem usadas com planejamento, quando quisermos, nos momentos necessários.
Vamos sofisticando nossas vidas e precisando cada vez mais de recursos para automatizar nossos comportamentos. E deixamos de fazer tantas coisas que serviriam até para melhorar nossos movimentos, nossa força e ativar nossas articulações.
Muitas atividades do homem de outros tempos serviam até como ações que foram substituídas por sessões de fisioterapia ou aulas de ginástica que fazemos em nossas casas.
Se vivermos equilibradamente as máquinas poderão facilitar nossas vidas e serem nossas companheiras. Muitas fazem mil coisas que nem saberíamos fazer, mas precisam estar sob nossa responsabilidade e comando.
Elas poderão ser nossos apoios para serviços mais pesados ou delicados de grande porte. Não precisamos viver sem elas. Podemos usá-las racionalmente.
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Dr. José Anézio Palaveri, médico, escritor, APLACE, setembro de 2020.
O CIRURGIÃO E SUA FORMAÇÃO NOS DIAS DE HOJE - Gaspar de Jesus Lopes Filho - unifesp
Vivemos hoje uma sociedade bastante diferente daquela de nossos
pais e avós e mesmo dos tempos de nossa própria vida acadêmica.
Mudou o perfil do médico e do cirurgião que acabou de vivenciar uma
experiência como aluno em um momento em que o aumento exponencial
do conhecimento médico torna inviável sob qualquer ponto de vista a
aquisição e assimilação cognitiva e as habilidades específicas a serem
adquiridas em apenas seis anos de curso letivo, levando à necessidade
cada vez mais premente de se estender o curso médico através de
programas de residência médica cada vez mais prolongados (Camargo &
Leme, 2011).
É importante ressaltar que esta geração procura também, e de
maneira legítima, uma melhor qualidade de vida, uma carga horária que
lhe permita uma conciliação com a sua vida privada, com níveis de tensão
menores, com menos “burn out”, com menos alcoolismo, com menos
drogaditos, com maior reconhecimento profissional, com remuneração
digna, com melhores condições de trabalho e com menos chances, se
tudo isso estiver presente, de incorrer em um erro médico, que pode
destruir a sua vida profissional, o seu patrimônio e, até, a sua vida pessoal.
No Brasil, um jovem cirurgião geral será provavelmente o único cirurgião
de plantão em muitos hospitais e unidades de saúde, mesmo nas grandes
cidades, e resta claro que o tempo atual de formação é insuficiente –
quatorze meses, se descontarmos dos 24 meses os dois meses de férias e
os oito meses de rodízios - e não permite que este jovem assuma sozinho
esse nível de responsabilidade (Santos, 2009)
Um terceiro aspecto, não menos importante, é que todo paciente,
tanto das grandes cidades como do interior do País, merece e tem o
direito de ser tratado por um cirurgião adequadamente treinado (Welch &
Allen, 2008). Merece e tem o direito ao cuidado, ao respeito e à interação
com ele e com os seus familiares, ao respeito aos seus valores e às suas
crenças e, também, à prática dos conceitos fundamentais da ética médica
em toda a sua abrangência.
Para fazer frente a todos esses desafios, o cirurgião precisa manter
como foco de sua atenção central o paciente e suas necessidades. Além
de todo um longo período de formação, fundamental para a aquisição e o
desenvolvimento de suas habilidades técnicas específicas, este
profissional precisa aprender a desenvolver intensamente as chamadas
habilidades não técnicas, cognitivas e interpessoais: liderança,
comunicação, trabalho em equipe, consciência situacional, gerenciamento
do stress e da fadiga, entre outras (Barroso, 2017).
E, finalmente e tão importante quanto, precisa aprender a manter
uma relação médico-paciente ética e dinâmica, ajudando o paciente e
seus familiares nas decisões a serem tomadas para a investigação da
doença e nas situações que envolvam a terminalidade da vida. Precisa
aprender a respeitar a privacidade e autonomia do paciente, observando
todos os preceitos da ética médica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Camargo OP, Leme LEG. Oito anos de graduação em Medicina. Diagn
Tratamento 2011;16(3):123-4.
2. Santos EG. Residência médica em cirurgia geral no Brasil – muito
distante da realidade professional. Rev Col Bras Cir 2009;36(3):271-6.
3. Welch C, Allen C. Surgical precision. Arch Surg 2008;143(11):1040-1.
4. Barroso E. Formação em cirurgia - competências técnicas e não
técnicas. Rev Port Cir 2017;41:5-6.
31 março 2018
DEBATE SOBRE BIOÉTICA - William Saad Hossne/Regina Parizi de Carvalho/Isac Jorge Filho
DEBATE SOBRE BIOÉTICA*
William Saad Hossne
Regina Parizi de
Carvalho
Isac Jorge Filho
Bioética
para quê?
A
bioética deve interferir na política ou, ao contrário, deve-se “bioeticalizar”
a política? O que se espera da bioética? Para quê formar bioeticistas? Como
transpor os muros da academia e levar a bioética à população? Estas e outras
questões polêmicas foram abordadas neste debate promovido pela Ser Médico, com propriedade e conhecimento, por dois expoentes e pioneiros
da bioética na Brasil: William Saad Hossne, professor emérito de Cirurgia da
Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp, membro fundador e primeiro presidente
da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), fundador e primeiro
presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB); Regina Parizi,
sanitarista, ex-presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São
Paulo (Cremesp), ex-vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), e
atual presidente da SBB. A mediação ficou a cargo de Isac Jorge Filho, Doutor em Cirurgia, chefe do Serviço de
Gastroenteroogia e Nutrição da Santa Casa de Ribeirão Preto, ex-presidente do Cremesp e Professor de Bioética da Universidade de
Ribeirão Preto.
Isac: Tenho ao meu lado dois ícones na bioética
brasileira, cuja história tem cerca de 30 anos. Podemos iniciar lembrando os
pontos cruciais ocorridos nesse período...
William: Começamos a introduzir a bioética no Brasil um pouquinho
mais atrasados que outros países, mesmo alguns da América Latina, devido à
ditadura militar, pois ela pressupõe, como toda ética, uma liberdade de
atuação, e implica, em uma análise crítica e reflexiva dos temas sobre os quais
se debruça, e em uma opção de valor. Vários colegas brasileiros já trabalhavam
com a bioética, mas não havia uma aglutinação dessas pessoas. Em 1992, em
Botucatu, com mais seis colegas, fundamos a Sociedade Brasileira de Bioética,
mas só pudemos criá-la, efetivamente, em 1995. Outros dois fatos importantes
aconteceram, concomitantemente: a criação da revista Bioética, do CFM, no final de
1992, com o respaldo dos Conselhos Regionais; e, em 1995, a constituição da
Comissão Nacional de Ética e de Pesquisa (Conep), pelo Conselho Nacional de
Saúde, para elaborar normas sobre ética na pesquisa em seres humanos, cuja
coordenação exerci com muita honra. A Conep tem, hoje, mais de 600 comitês.
Esses três fatos impulsionaram o crescimento da bioética brasileira, levando ao
congresso mundial, em Brasília. Desde então, vários outros congressos foram
realizados e, atualmente, ela é respeitada. Outro fato importante da bióética
mundial e, particularmente, da brasileira, no século 21, foi a criação dos
cursos de pós-graduação Stricto
sensu. Não sendo capaz de, sozinha, dar as respostas necessárias, a
bioética se juntou a outras disciplinas, de forma inter e multidisciplinar.
Estamos formando uma comunidade de bioeticistas. E aí está a grande questão
atual: temos de formá-los bem. O risco agora é o de que essa comunidade de
especialistas comece a pautar a bioética esquecendo-se que ela surgiu de um
clamor da sociedade. A bioética não é minha, nem sua, ela é de todo mundo que a
discute. Esse é o desafio.
Isac: Exatamente, só queria acrescentar algo:
quando se fala que é multidisciplinar, eu diria multiprofissional.
William: Mais ainda, não basta ser multidisciplinar
e multiprofissional, tem de ter o espírito da transdisciplinariedade. Se o
médico tem uma opinião, e o advogado, outra, ambos terão de parar e ver porque
o outro está divergindo e tentar entender a visão do outro e vice-versa.
Isac: Regina, como presidenta da Sociedade
Brasileira de Bioética, gostaria de saber como dimensiona o impacto da bioética
na vida do brasileiro? Em um curso multiprofissional que ministrei escutei algumas perguntas do tipo “para quê serve, na prática a Bioética?”. Nessa linha, quais os impactos do
avanço da bioética no Brasil?
Regina: Concordo com o histórico, só não sei se
foi tão espontâneo, professor William. O fato de 95 ter sido um marco da
história da bioética brasileira foi também porque houve, no CFM, um debate
muito intenso e objetivo com os médicos e a comunidade acadêmica sobre essa
questão. Tive o privilégio de participar dele porque, na época, eu era
vice-presidenta daquela entidade. Foi um processo iniciado na década de 80, com
o Gabriel Oselka, o Costinha (checar
nome inteiro). Na sequência
veio a Conep, que também foi bem discutida no CFM. De lá para cá, vejo que a
formação de um contingente de especialistas ou de acadêmicos tem sido
importante, ao criar uma massa crítica no Brasil, com essa característica
multiprofissional e multidisciplinar. Mas, como orientadora de mestrado,
percebo que a interdisciplinariedade – que é reunir os diferentes atores para
discutir os casos e deliberar juntos – ainda é um grande desafio da bioética, o
qual venho estudando. Será que temos modelos metodológicos que a facilitem? Até
hoje é difícil compor um grupo com conhecimentos e áreas diferentes. É
extremamente importante superar a questão da complexidade e da integralidade
para abordar os problemas e os conflitos do ser humano. A bioética se propõe a
isso. Acabei de participar do Encontro
Latino-americano de Bioética, no Peru, e a pauta de todos os países
presentes é muito semelhante. Por exemplo, um ponto comum é a questão da saúde
e da doença com focos mais específicos. Quando se fala em saúde, fala-se de
desenvolvimento social e econômico, sustentabilidade, meio ambiente, pobreza,
analfabetismo... Enfim, todas as questões necessárias para se prover o ser
humano de condições econômicas e sociais que lhe proporcionem, de fato, uma
saúde razoável. Por outro lado, há outros aspectos em relação à assistência à
saúde que são os dogmas de diversas religiões – católica, mulçumana, protestante,
entre outras. Eles se batem com os avanços tecnológicos na saúde, com as
diretivas antecipadas de vontade, a morte com dignidade etc, embora nesses
casos, as religiões estão cada vez mais permeáveis. Já a questão do aborto,
ligada a outros aspectos da vida, sofre ainda uma resistência muito grande. Em
segundo lugar, tem a questão das novas tecnologias de melhoramento humano. Na
SBB, somos muito procurados para falar com a grande imprensa sobre questões do
futuro: máquina que faz órgão, intervenção genética que melhora seu desempenho
muscular etc.
Isac: Falamos sobre bioética, formação do
bioeticista... mas para fazer o quê? Temos uma população que não sabe nada a
respeito disso. Ainda não conseguimos fazer com que as escolas tenham aulas a
esse respeito, embora insistamos que a bioética não é assunto só de médico, nem
só da academia. Ao longo desses anos, temos reprisado muito o mesmo ponto de
vista: a bioética no começo de vida, no final de vida, principialista etc. E
ficamos nisso. Não fugimos muito das publicações feitas lá atrás. O livro do
CFM ainda é um dos mais usados na bioética brasileira. O enfoque não mudou
muito. Você está dizendo, Regina, que a procuram mais para comentar a respeito
dos avanços científicos e tecnológicos... De que bioética estamos falando? O
que nós esperamos dela? Que cuidado precisamos ter para não obstar o avanço da
ciência e, ao mesmo tempo, não permitir desmandos nas áreas de pesquisa e
tecnologia?
William: Lembrei-me de um colega médico indagado
pela banca em nosso programa de pós-graduação: “afinal para que serviu esse
curso para você?”. Ele disse: “tornei-me um médico melhor”. Por coincidência,
um mês depois um padre que defendia sua tese respondeu à mesma pergunta: “Eu me
tornei um padre melhor”. A bioética serve para nos dar a chance de promover
avanços profundos para toda a humanidade. A ética sempre esteve a reboque
do avanço científico e tecnológico. Já a bioética – com a ressalva de que ela
não deve ficar só na academia e não pode ser instrumentalizada, seja por um partido
político ou seita religiosa, por motivos ideológicos ou espúrios, e, sim, deve
ser autêntica – propõe uma mudança profunda: colocar a ética ao lado da
tecnologia, como, por exemplo, as normas para pesquisas com seres humanos, de
forma que nenhum projeto nessa área possa sequer ser iniciado se não tiver uma
aprovação e uma reflexão ética conjunta, não ad posteriori. Será também extraordinário se conseguirmos
trabalhar fora da comunidade acadêmica. Quando falo da formação do bioeticista é no sentido de levar a bioética para toda a
sociedade. Nosso programa de pós-graduação está começando a introduzir a
bioética no ensino médio. Estou dando um curso de bioética para técnico de
enfermagem, chamado Bioética
do dia a dia, à beira do leito. A bioética, de certa forma, é o
renascimento do fenômeno extraordinário ocorrido na Grécia antiga, que foi o
nascimento da medicina, da filosofia socrática e da ética e da democracia, ao
mesmo tempo. Os três foram fundamentais uns para os outros. A bioética está
ajudando não só a medicina, a filosofia, mas todas as ciências da saúde e as
ciências humanas e sociais. E está aperfeiçoando a democracia, não apenas como
fenômeno de eleição ou reeleição, mas como liberdade, e como conquista social e
institucional. Isso ocorrerá, cada vez mais, se a humanidade tiver juízo –
espero que tenha –, e se nós que trabalhamos na bioética tivermos a humildade
de reconhecer e cultivar isso. Temos de tomar cuidado para não nos trancarmos
dentro de uma torre e ficar achando que o restante da sociedade vai absorver
isso. A ética, como temos dito, acertadamente, tem de ser intervencionista, mas
não se pode cobrar dela tarefas que são do presidente da república, do médico
etc. Senão, daqui a pouco, o medico vai delegar a sua decisão para uma comissão
de bioética. Essa delibera e ajuda, mas é o profissional que trata o paciente e
deve ter o poder e a autoridade para tomar decisões.
Regina: Em geral, dificilmente existem grandes
divergências na bioética, a não ser quando entram os dogmas. Mas tem olhares,
às vezes, diferentes. Por exemplo, acho que um dos papéis da ética e da
bioética em relação à sociedade é, exatamente, interferir na política. Porque o
cidadão comum espera conseqüências dessa discussão, por meio de medidas de
políticas públicas mais adequadas para a sociedade. Os bioeticistas têm de
estar atentos a isso. O debate, às vezes muito acadêmico, cria uma certa dificuldade na sociedade.
Isac: A minha pergunta tinha esse tom de
provocação mesmo. Porque gostaria de saber se não temos de começar a conversar
sobre conflitos bioéticos com o aluno do primeiro grau. Não estamos fazendo
isso...
Regina: Estamos discutindo, na SBB, a
possibilidade de que parte dos trabalhos apresentados no congresso de bioética
seja, por exemplo, de alunos secundaristas, não apenas de alunos da
pós-graduação, porque esse debate criou uma elite e fica circunscrito a ela.
Concordo com você, Isac, a bioética tem de transpor o muro da academia.
Precisamos buscar mecanismos para que isso ocorra. A sociedade tem os conflitos
sobre a reprodução assistida, a eutanásia, o aborto etc. Parte dela ainda busca
dentro na igreja a resposta para conflitos dessa natureza. Contudo, para outra
parte a religião já não responde mais às suas necessidades. Em seu nascimento,
a bioética tinha uma ética bem ocidentalizada, mas com a expansão da
globalização e o contato com outras culturas, começamos a verificar que os
valores morais são muito mais plurais do que imaginávamos. Em uma
pré-conferência do projeto genoma na Unesco, fiquei impressionada ao ouvir
representantes do Japão, da Tailândia, das Filipinas, entre outros,
manifestarem valores morais absolutamente diferentes dos nossos, aos quais não
temos acesso por causa da inexistência de traduções de livros desses países.
Precisamos enxergar essa questão da pluralidade do ponto de vista ético e
debater como vamos fazer acertos e arranjos para determinados conflitos. Por
exemplo, do ponto de vista científico e tecnológico o grande desafio para os
bioeticistas – e que mobiliza a sociedade neste momento – é, sem dúvida, a
questão do projeto de genoma.
Isac: A Regina abordou uma questão extremamente
interessante: a de que a bioética tem de ter uma influência política...
William: Concordo em termos, ou inverto a questão.
Politizar a bioética significa usar a palavra em dois sentidos, pode ser o da polis grega, que é válido, ou no sentido
político-partidário, com o qual não concordo. Por isso, prefiro falar um
bioeticalizar a política.
Regina: Eu não usaria outro termo, me desculpe
professor. A bioética é a fundamentação da política. Por exemplo, a crise da
água... A bioética é a ética da vida. Alguém vive sem água potável? Então o
bioeticista tem de fazer política, sim. E dizer o seguinte: o ser humano
precisa de água potável senão a espécie humana vai acabar. Não podemos fugir
dessa tarefa, ela é nossa.
William: Falei sobre a questão partidária, sobre o
risco de se usar a palavra politizar sem dizer o que está entendendo por isso.
Regina: Acho que o mundo bioético não mistura
tanto não, porque trabalha com a questão da autonomia.
William: Peguei uma frase solta e estou tentando
mostrar que, dita de maneira impensada, sem o devido esclarecimento, cria um certo
mal estar para mim, pois preferiria trocá-la por outra.
Regina: As pesquisas deviam ser mais votadas para
sociedade, o senhor não acha? Porque vemos a produção acadêmica e pensamos:
qual é a necessidade de se ter, por exemplo, seis ou sete versões do que o
Foucault disse? Um dos nossos desafios é dizer, olha meu amigo, vamos trabalhar
sobre questões de bioética mais vinculadas ao cotidiano das pessoas.
William: É o que estamos tentando fazer, como o
curso de bioética que estamos dando, o Bioética
do dia a dia, à beira do leito. Ficamos discutindo se liga ou desliga
aparelho, mas quem está com o doente terminal? Quem está vivenciando o drama?
Quem é está conversando com a família? É o atendente que está lá e não tem
nenhuma formação do componente ético do trabalho dele.
Isac: A bioética precisa ser institucionalizada
nas escolas – não apenas as médicas. Senão, a tendência é repetir o que ocorreu
com a farmacologia clínica, que não é mais ensinada: “ah.. bioética
todo mundo tem de saber”. Nossas entidades de classe e sociedades de bioética
devem trabalhar para institucionalizá-la.
William: A bioética traz um grande legado, que
precisa ser cuidado e difundido. Ela pertence a toda sociedade, mas não tem
receita pronta. Essa não é sua função, mas, sim, ajudar a encontrá-la. Ela
existe porque existe a diversidade, senão não precisaríamos de bioética, mas de
um código ou lei.
Regina: Minha formação em saúde pública me
levou sempre a abordar a questão das condições sociais e econômicas, e seus
impactos na saúde. Quando nós, sanitaristas, falávamos isso nas décadas de 70 e
80 diziam: “vocês estão querendo politizar”. Mas, hoje, essa é a definição de
saúde da Unesco, que preconiza: para se ter saúde é preciso ter condições
sociais e isso envolve o combate ao analfabetismo, à exclusão social, à
marginalização, o acesso à água, entre outros. E gostaria de acrescentar outra
questão, importantíssima para a bioética, que é um fenômeno transversal no
mundo, a urbanização. Quase 80% da população mundial estão nas cidades – o
Brasil é um dos países que está em primeiro lugar nesse ranking, com 78% da
população urbanizada. Obviamente, do ponto de visto ético e bioético isso
provocará repercussões importantes, sobre as quais temos de nos debruçar, assim
como sobre as conseqüências do envelhecimento da população.
Isac: Agradeço a essas duas figuras de proa da
bioética brasileira, que são a Regina e o professor William. Fiquei muito feliz
por ter participado desse debate ao lado de vocês.
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Publicado em 2015 na Edição 71 da Revista Ser
Médico – CREMESP – pag. 16 a 21.
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