14 maio 2014

BIOÉTICA: REFLEXÕES SOBRE A TANATOLOGIA

REFLEXÕES SOBRE A TANATOLOGIA
“A visão holística do ser humano nos cuidados paliativos busca cuidar quando já não é mais possível curar”
Isac Jorge Filho
“E somos Severinos,
iguais em tudo na vida.
Morremos de morte igual, 
da mesma morte Severina,
que é a morte de que se morre 
de velhice antes dos trinta, 
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia.”
Em “Morte e Vida Severina” João Cabral de Mello Neto consegue, com os versos acima, definir a morte intolerável, a morte que não se pode aceitar, seja ela pela violência do trânsito, do crime ou da guerra, seja por fome ou outros problemas sócio-econômicos que acabam por constituir a chamada mistanásia, no dizer de Márcio Fabri dos Anjos. A cada 3,6 segundos morre uma pessoa de fome em nosso planeta. São 24 mil por dia, na maioria crianças desnutridas. São 820 milhões de famintos no mundo, apesar de se produzir uma quantidade de alimentos que daria para suprir todas as necessidades. Jacques Diouf, diretor da Food and Agriculture Organization (FAO), declarou que o combate à fome no mundo foi um fracasso coletivo.  A morte como consequência da fome é simplesmente inaceitável! Cada médico, cada cidadão,  deve levantar sua voz, manifestar sua indignação e fazer o que lhe for possível para que tais mortes não ocorram.
Diferente disso é a morte natural, a ortotanásia, que é parte do ciclo de vida, como bem definiu, poeticamente, Tagore em “Pássaros errantes”:
“A morte pertence à vida,
como pertence o nascimento.
O caminhar tanto está 
em levantar o pé
como em pousá-lo ao chão.”
Na cultura ocidental há uma grande resistência em se aceitar e até mesmo refletir sobre a morte. Quando se trata de médicos, a resistência tem o agravante de que, até inconscientemente, cada morte acaba sendo sentida como uma derrota na luta pela vida e pela saúde. No entanto, como diz um velho adágio: “a única coisa que, com certeza, se pode prever para o futuro é a morte”. Essa resistência em aceitar a morte natural acaba levando os médicos a determinar medidas fúteis de manutenção da vida, que nada trazem de positivo para o paciente, para seus familiares e para a comunidade. Essa insistência em não aceitar a morte natural, em luta inútil contra o fechamento do ciclo natural da vida, constitui a distanásia e, sob alguns aspectos, representa um desejo inconsciente de deificação de cada um. São muitos exemplos de manifestações contra a distanásia. Uma das mais emblemáticas foi a resolução do Papa João Paulo II, que, após prolongado sofrimento determinado por doença degenerativa incurável, em fase terminal, se recusou a voltar para o hospital, ficando em seus aposentos sem aceitar procedimentos fúteis para prolongamento da vida. As últimas palavras que pronunciou foram: “deixem-me partir para o Senhor”.
Os dias atuais assistem a uma luta contra o que se chamou de eutanásia, que seria a morte piedosa. O abreviar do ciclo da vida, de um modo geral, envolve os mesmos enganos encontrados em seu adiamento artificial por meio de medidas fúteis e inúteis de manutenção de uma vida sem qualidade. Na eutanásia, a ação ou omissão deliberada no sentido de apressar a morte, mesmo que bem intencionada e piedosa, tem sido objeto de amplas discussões e questionamentos.Eutanásia, em tese geral, e distanásia são os dois lados da mesma moeda, mas tratados de forma diametralmente oposta. Enquanto a distanásia encontra apoios e estímulos, a eutanásia é considerada crime pela Constituição e é vedada pelo Código de Ética Médica. Padre Léo Pessini, notável estudioso brasileiro sobre o assunto, nota “um silêncio bibliográfico em relação à distanásia e muita literatura sobre a eutanásia”, e considera um equívoco nomear qualquer interrupção de tratamento como sendo eutanásia.
O que se propõe no caso de paciente em terminalidade de vida: aliviar seu sofrimento induzindo morte piedosa (eutanásia) ou manter apenas os seus sinais vitais, com uso de meios agressivos, mas inúteis, mesmo que não haja prognóstico?
Aqui, entra o conceito de ortotanásia, o deixar morrer naturalmente, sem intervenções agressivas e inúteis, mas cercando o paciente de cuidados especiais que lhe permitam um morrer digno e sem sofrimento. A resposta à pergunta acima é encontrada nos chamado “cuidados paliativos”, definidos pela Organização Mundial de Saúde, em 2002, como sendo “a abordagem que promove qualidade de vida de pacientes e seus familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, através de prevenção e alívio do sofrimento. Requer a identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual”. É atividade multiprofissional que exige intenso trabalho de profissionais ligados à área da saúde, incluindo assistência espiritual. A visão holística do ser humano nos cuidados paliativos busca “cuidar” quando já não é mais possível “curar”. A Medicina Paliativa é atividade que cresce no mundo todo, já se constituindo especialidade reconhecida na Inglaterra desde 1987, e não se restringe aos casos de terminalidade da vida, sendo utilizada em outras situações.
A filosofia do cuidar, dos cuidados paliativos ao paciente terminal, está bem evidenciada nas palavras de Cicely Saunders:
“Ao cuidar de você no momento final da vida,
quero que você sinta que me importo pelo fato de você ser você,
que me importo até o último momento de sua vida e,
faremos tudo que estiver ao nosso alcance,
não somente para ajudá-lo a morrer em paz,
mas também para você viver até o dia de sua morte.”
Infelizmente, existe confusão em alguns setores com relação à ortotanásia, confundindo-a com a eutanásia em seu sentido criminal e considerando atitude passível de processo a restrição de recursos artificiais, por mais inúteis que sabidamente sejam. Pressionado por esse ponto de vista, o médico acaba por insistir em medidas fúteis, mesmo que elas não tragam benefícios para o paciente e seus familiares. A indicação de início e de suspensão de medidas médicas deveria ser de decisão médica. Mas, quem vai tomá-la equilibradamente sem segurança de que, mesmo fazendo o correto, não será punido por isso? E fica aí um círculo vicioso que mantém medidas sem valor prático, na esperança de milagres. O Conselho Federal de Medicina, por meio de resolução, procurou regulamentar o assunto. Buscou com isso dar ao médico segurança e tranquilidade para, diante de pacientes em terminalidade de vida, sem prognóstico e sem esperança, se abster das medidas fúteis, sempre após discussão e acordo com paciente (se for possível) e familiares. Foi um grande avanço, infelizmente derrubado pela visão equivocada de que essa atitude configuraria eutanásia e, portanto seria criminosa. Nenhum médico de boa formação teria a irresponsabilidade de suspender medidas realmente úteis, mas nenhum médico deseja que seu comportamento correto em termos científicos e humanísticos seja considerado um crime. Há necessidade de uma legislação clara que procure analisar estas situações de forma isenta, tendo como medida a dignidade do ser humano.


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