Isac Jorge Filho
É um espetáculo deprimente que se repete a cada vez que são divulgados os resultados dos vestibulares pra Medicina. Futuros médicos assumem papéis lamentáveis e recebem seus novos colegas com calorosas manifestações...de selvageria.
O que devia ser momento de alegria pela recepção dos novos colegas se transforma em manifestação bestial de desamor ao próximo. As notícias resultantes dessa “recepção” frequentemente são trágicas: é o calouro que morreu afogado, é o outro que ficou cego, é o que sofreu trauma craniano, é o que teve queimaduras pelo corpo... é um circo de horrores perpetrados pelos que deviam ser a elite cultural do país. E estamos falando de jovens que tiveram o privilégio de ser universitários em meio a analfabetos e semi-alfabetizados. Que fazem parte daqueles que receberam mais, em um país onde a regra é receber menos.
A origem do termo tem interessante simbolismo. Classicamente o trote se refere a certa forma de movimentação de cavalos, situada entre o passo e o galope. É processo que deve ser ensinado, muitas vezes por meio de chicote e espora. Lamentavelmente é dessa maneira que o calouro é encarado, em muitas universidades, pelo veterano. A título de “confraternização”, ele deve ser “domesticado” por meio de práticas humilhantes e vexatórias, geralmente estimulado por grandes quantidades de bebidas alcoólicas que é obrigado a ingerir, para que simbolicamente “aprenda a trotar”.
Não é assim que deve começar a formação de um médico. Temos proposto uma campanha nacional pela recepção civilizada e social ao novo universitário, que já diferencie aqueles que alguns anos depois vão jurar exercer Medicina ética, com zelo e respeito pelos pacientes e pelos colegas. Pouca gente se preocupa com esta proposta. Continuam vendo, passivamente, futuros médicos embriagados participando, forçados ou não, da celebração das diferenças sociais, já que uma das atividades “clássicas” do trote é pedir moedas em esquinas, ocupando o lugar dos infelizes que, lamentavelmente, vivem dessas esmolas. E calouros e veteranos gargalham alcoolizados ante essa extrema falta de sensibilidade diante da pobreza. Algum tempo depois vão repetir o Juramento de Hipócrates, automaticamente. Sempre esperamos que os seis anos de curso e o contato com pobres e doentes tenha tirado deles o sadismo demonstrado nas manifestações do trote.
Questionadas, algumas diretorias de faculdades tem respondido argumentando que o trote está proibido dentro de seus “campi”. É pouco. É o mesmo que admitir que, depois de formado, o médico possa cometer barbaridades, desde que não seja no hospital, ambulatório ou consultório.
Felizmente é cada vez maior o número de calouros e veteranos que se coloca contra essa barbárie, vinda de costumes medievais. Também cresce o número de familares que deixa de entender essas manifestações como "coisas normais da juventude". Não é não: a juventude é generosa e sensível e esse costume bárbaro não faz parte do espírito de jovens que pretendem ser médicos em um país com tantos doentes.
É fundamental que a categoria médica reconquiste o respeito da população. É bom “começar do começo”. Não se pode esquecer que o calouro é o futuro médico e o trote selvagem não é maneira correta de iniciar o preparo para uma profissão que lida com vida, saúde e ética.