07 março 2012

O “TROTE” E A RESPONSABILIDADE ÉTICA DOS FUTUROS MÉDICOS


                                                                                                                 ISAC JORGE FILHO

          É um espetáculo deprimente que se repete a cada vez que são divulgados os resultados dos vestibulares. Futuros médicos assumem papéis lamentáveis e recebem seus novos colegas com calorosas manifestações...de selvageria. O que devia ser momento de alegria pela recepção dos novos colegas se transforma em manifestação bestial de desamor ao próximo. As notícias resultantes dessa “recepção” frequentemente são trágicas: é o calouro que morreu afogado, é o outro que ficou cego, é o que sofreu trauma craniano, é o que teve queimaduras pelo corpo... é um circo de horrores perpetrados pelos que deviam ser a elite cultural do país. E estamos falando de jovens que tiveram o privilégio de serem universitários em meio a analfabetos e semi-alfabetizados. Que fazem parte daqueles que receberam mais, em um país onde a regra é receber menos. A mídia tem divulgado o aumento do número de vagas ocupadas por pessoas mais ricas nos vestibulares de faculdades públicas, mostrando o agravamento da concentração de renda.

          A origem do termo tem interessante simbolismo. Classicamente o trote se refere a certa forma de movimentação de cavalos, situada entre o passo e o galope. É processo que deve ser ensinado, muitas vezes por meio de chicote e espora. Lamentavelmente é dessa maneira que o calouro é encarado, em muitas universidades, pelo veterano. A título de “confraternização”, ele deve ser “domesticado” por meio de práticas humilhantes e vexatórias, geralmente estimulado por grandes quantidades de bebidas alcoólicas que é obrigado a ingerir, para que simbolicamente “aprenda a trotar”. Por incrível que pareça ainda existem defensores do trote, que querem dar a ele a função de rito de passagem ou ritual de iniciação, sendo método para promover a lealdade e a camaradagem do grupo por meio do sofrimento compartilhado, o que criaria um vínculo entre calouros e veteranos.

          Não é assim que deve começar a formação de um médico. Não é assim que deve um universitário, como cidadão, fazer suas manifestações de agradecimento ao sacrifício de muitos para que poucos cheguem à universidade. Os que aí chegam devem ser exemplos de cidadania e não de violência.

          Temos proposto uma campanha nacional pela abolição do trote e substituição por recepção civilizada e social ao novo universitário, que já diferencie aqueles que alguns anos depois vão jurar exercer Medicina ética, com zelo e respeito pelos pacientes e pelos colegas. Pouca gente se preocupa com esta proposta. Continuam vendo, passivamente, futuros médicos embriagados participando, forçados ou não, da celebração das diferenças sociais, já que uma das atividades “clássicas” do trote é pedir moedas em esquinas, ocupando o lugar dos infelizes que, lamentavelmente, vivem dessas esmolas.

          Questionadas a respeito algumas diretorias de faculdades tem respondido argumentando que o trote está proibido dentro de seus “campi”. É pouco. É o mesmo que admitir que, depois de formado, o médico possa cometer barbaridades, desde que não seja no hospital, ambulatório ou consultório.

          A maioria dos calouros é contra esse tipo de trote, mas acaba sendo suplantada pela minoria que o admite porque espera, com ansiedade, o ano seguinte para a “vingança”.

          É fundamental que a categoria médica reconquiste o respeito da população. Não se pode esquecer que o calouro é o futuro médico e o trote selvagem não é maneira correta de se começar o preparo para uma profissão que lida com vida, saúde e ética.



22 janeiro 2012

O ABSENTEÍSMO VISTO POR OUTRO ÂNGULO



                                                                                                                                   Isac Jorge Filho *

          É queixa comum por parte de chefias de empresas privadas ou de repartições públicas a ausência de funcionários em horários de trabalho por diferentes razões, inclusive consultas ou tratamentos médicos e odontológicos. Por outro lado torna-se cada vez mais freqüente um outro tipo de absenteísmo: o do paciente que marca consulta ou tratamento e, sem dar menor satisfação, simplesmente não aparece.

          Trata-se de desrespeito que quebra, já de início, uma futura relação médico-paciente, importante pilar para bons resultados nos tratamentos. No Cremesp temos recebido um número cada vez maior de queixas desse tipo. Não há o que possamos fazer: o Cremesp é uma Autarquia Federal voltada para a fiscalização dos médicos e não dos pacientes. No entanto, alguns colegas tem colocado em suas denúncias a seguinte pergunta: “Quando um paciente que não conheço já falta à primeira consulta sem justificativas tenho direito de orientar a secretaria do consultório para não marcar se este paciente tentar marcar novamente?”. A resposta não é fácil, mas esse direito está bem claro no Código de Ética Médica em vigor, que diz, no inciso VII do Capítulo I (Princípio Fundamentais): “O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.

          Penso que algo está muito errado na relação entre profissionais de saúde e setores da população quando se chega ao ponto de pensar em não atender um paciente, mesmo preenchidas as condições citadas acima (não é urgência nem emergência, existem outros médicos e o não atendimento naquela ocasião não trará danos à saúde). É um fenômeno que merece amplo estudo especializado. No entanto, não é fácil aceitar que o paciente não entenda que, ao marcar uma consulta, está assumindo um compromisso com o médico ou dentista e ocupando um horário que poderia ser utilizado por outro. Faltar a esse compromisso sem justificativas é ato de desconsideração e desrespeito. Uma boa relação médico-paciente não se inicia assim e talvez seja bom, para as duas partes, nem começar.

          É claro que existem situações excepcionais que justificam a ausência do paciente, mas, na grande maioria das vezes, um simples telefonema, transferindo ou cancelando a consulta, evitaria o problema e demonstraria o respeito mútuo que deve prevalecer em uma boa relação entre pessoas.

• * Isac Jorge Filho é Médico, Conselheiro e Ex-Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.