31 dezembro 2009

SE O ANO É NOVO, VAMOS PENSAR O NOVO

“Não fiquem lembrando do passado, não pensem nas coisas antigas, vejam que estou fazendo uma coisa nova, ela está brotando agora e vocês não percebem?” Isaías 43, 18-19.

Queremos mudar e vamos repetindo sempre as mesmas rotinas e depois ficamos reclamando que o mundo não vai bem, que nada dá certo, que antigamente é que era bom, que, do jeito que as coisas vão, estaremos perdidos, que isso mais aquilo.
Esquecemo-nos de que o mundo é uma aldeia e de que o que acontece por aqui ou em outro hemisfério tem repercussões globais.
Minha família vai bem, estou empregado, tenho minhas regalias, por que me preocupar com os outros e ficar perdendo meu tempo em debates, discutindo o futuro de minha cidade e do mundo?
Desejamos um feliz ano novo para alguém que está numa pior, sem perspectivas de mudanças, no maior sofrimento, com o maior descompromisso. Parece que achamos que o papai noel vai salvar o país e o mundo das garras dos gananciosos, dos despreocupados com a situação do planeta. Por aqui não há catástrofes, elas já estão por perto, mas demorarão para chegar em nossas casas...
Fechamos os olhos e não vemos as injustiças diárias em nossos portões, em nossas atividades públicas e privadas. Acreditamos nas estatísticas com a maior inocência, sem o menor espírito crítico.
Nossas autoridades e governantes, e legisladores gozam de nossa admiração mesmo quando esbanjam nosso dinheiro, vivem num sistema de corrupção que já passamos a achar inevitável. Sempre foi assim, todo mundo faz, eles dizem, como que querendo se justificar. E ficamos esperando atitudes de algum poder que possa deter sua sede. E esperamos que os julgadores condenem, façam alguns devolverem o dinheiro roubado, mas as leis que eles mesmos fizeram são frouxas e deixam até o judiciário paralisado com os recursos e as instâncias e o tempo que vai passando, e sempre os mesmos envolvidos, mudando simplesmente de cargos, ou de partidos, ou de estados.
Flutuar no passado pode nos trazer boas lembranças ou até pesadelos, mas pode nos imobilizar. Ir ás profundezas do presente, descobrir suas belezas e seus mistérios é o sabor da vida, mas com respeito, coragem e aquela tolerância que não se alia com o mal ou com o espírito de levar vantagens com omissões espúrias e alianças vergonhosas.
Criar asas que nos transportem pelos ares do futuro com sentimentos de plenitude, de responsabilidade, de compromisso, mesmo às custas de perdas pessoais, mas na sensação de não termos sido alguém mais que só pensou em si, só olhou para seu umbigo, ou para sua conta bancária. A omissão agora pode custar nosso futuro. Nossos líderes não tiveram a coragem de pensar no planeta como um todo, foram pífios e covardes, pensando só em seus interesses locais. O universo não depende de nosso planeta, mas nós não sobreviveremos se não cuidarmos dele, não lá longe, mas por aqui, bem pertinho de nossa casa.
Abra as janelas para saudar a vida que chega com a brisa do despertar do ano Novo.
Dr. José Anézio Palaveri, 1º de janeiro de 2010.
Médico, membro da APLACE.

05 dezembro 2009

O COMPROMISSO DOS MÉDICOS E O NOVO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA

ISAC JORGE FILHO

A Ética dos Médicos é, antes de tudo, um compromisso social que se assume publicamente por meio de Juramentos, como o de Hipócrates e individualmente, seja por meio de Orações, como a de Maimônides ou, melhor ainda, quando feita pelo próprio médico perante sua consciência.
Formalmente os médicos estão comprometidos com um conjunto de normas éticas e morais, reunidos em um Código de Ética Médica que no Brasil é tarefa realizada pelo Conselho Federal de Medicina, junto com os Regionais. Os Conselhos são autarquias do poder público federal, responsáveis pela fiscalização do exercício profissional dos médicos no País.
Os artigos de um Código de Ética refletem aquilo que é considerado bom e correto para a sociedade, nas condições e momento de sua produção. Como as condições se modificam, também os Códigos devem ser atualizados. Exemplo clássico para essa periódica modificação é a análise do Juramento de Hipócrates, considerado o primeiro conjunto de normas éticas a ser seguido pelos médicos e que inclui normas que certamente não podem ser aplicadas nos dias de hoje. É o caso da promessa de não realizar a “talha”, que deixou de ter sentido a partir do desenvolvimento da Cirurgia.
O primeiro Código utilizado no Brasil foi o da Associação Médica Americana, traduzido para a língua portuguesa em 1867 em Salvador (BA). O primeiro genuinamente brasileiro foi o “Código de Moral Médica”, lançado em 1929 e, dois anos depois, substituído pelo “Código de Deontologia Médica”, que foi atualizado em 1945. Em 1953 passa a ser utilizado o “Código de Ética da Associação Médica Brasileira” e em 1965 sai o primeiro dos códigos com o nome de “Código de Ética Médica”, substituído, em 1984, pelo “Código Brasileiro de Deontologia Médica”. O ano de 1988 marca um grande avanço na produção de um “Código de Ética Médica” no Brasil. Sob a influência positiva de um brilhante momento nacional, à luz da Constituinte, nascia um Código inovador, muito voltado para os Direitos Humanos e Direitos do Cidadão, que ainda está em vigor.
Como já previsto em sua elaboração, o Código de Ética Médica é complementado pelas Resoluções do CFM. O número delas foi gradativamente aumentando, na medida em que novas situações, não previstas, iam aparecendo, o que levou a um conjunto de resoluções, que superariam em volume o próprio Código, criando dificuldades para a análise de determinadas situações. Por outro lado decisões judiciais comprometeram a aplicação de alguns artigos, o que exigia adequações, e o estudo comparativo com Códigos utilizados em outros países apontava para a necessidade de uma revisão que se tornava ainda mais necessária pela necessidade de incorporação de novos temas, como os dilemas bioéticos.
Em função dessas necessidades, um amplo trabalho foi realizado nos anos de 2008 e 2009 pelo Conselho Federal de Medicina e Conselhos Regionais com análise de propostas enviadas pelos Conselhos Regionais de Medicina, Entidades Médicas, Médicos de todo País e Instituições científicas e universitárias. O trabalho se concentrou na atualização de artigos do atual código, com ênfase para “a busca de melhor relacionamento com o paciente e a garantia de maior autonomia à sua vontade”. Nascia, assim, por meio da Resolução CFM no 1.931, de 17 de setembro de 2009, o novo Código de Ética Médica, que entrará em vigor a partir de cento e oitenta dias de sua publicação.
O novo Código de Ética Médica, com 14 capítulos, é composto de 45 incisos e 118 artigos. Inicia-se com um preâmbulo, com 6 incisos; seguem-se os princípos fundamentais com 25 incisos; as normas de direitos médicos (normas diceológicas), com 10 incisos; as normas dos deveres dos médicos (normas deontológicas), com 118 artigos; e é finalizado com 4 incisos de disposições gerais.
Um relevante número de artigos receberam modificações em seu texto, alguns foram retirados e outros acrescentados, como artigos ou incisos novos. O Conselheiro Antonio Pereira Filho realizou interessante análise comparativa entre o Código atual e o de 2009, observando neste último uma série de novos artigos ou incisos que não encontram correspondência no Código de 1988. Abaixo, faremos breves considerações sobre eles.
Entre os princípios fundamentais (Capítulo I), o Código de 2009 inova ao colocar incisos relacionados com:
a) A Medicina não é uma atividade de relação consumista. O inciso XX deixa claro que "A natureza personalíssima da atuação profissional do médico não caracteriza relação de consumo". Essa determinação é importante por se contrapor ao absurdo que é considerar a atividade médica como sujeita ao Código do Consumidor, o que vai contra todos os bons princípios da Medicina, baseados na relação médico-paciente. Colocar a atividade médica como relação de consumo, apesar de constar em lei, é claro convite ao exercício da profissão como comércio.

b) A Pesquisa Médica deve se cercar de cuidados éticos, sempre em benefício dos pacientes e das populações. Nesta linha, o inciso XXI – prega o respeito à autonomia do paciente na tomada de decisões profissionais quanto a procedimentos diagnósticos e terapêuticos, desde que tais decisões sejam adequadas ao caso, cientificamente reconhecidas e que não sejam contrárias aos ditames de consciência e previsões legais. O inciso XXIII define que “Quando envolvido na produção de conhecimento científico, o médico agirá com isenção e independência, visando ao maior benefício para os pacientes e a sociedade”. O inciso deixa claro que o objetivo nunca poderá ser comercial, promocional ou ligado a interesses empresariais. Na mesma linha de garantir níveis éticos às pesquisas, incluindo respeito às determinações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), o inciso XXIV estabelece que “Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa”. Adicionalmente, o inciso XXV define que na aplicação dos conhecimentos criados por novas tecnologias, considerando suas repercussões nas gerações presentes e futuras, o médico deverá zelar "para que as pessoas não sejam discriminadas por nenhuma razão vinculada a herança genética, protegendo-as em sua dignidade, identidade e integridade".

O Capítulo III do novo Código, relacionado com a responsabilidade profissional do Médico, inova em seu artigo 16 "vedando ao médico intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na modificação genética da descendência". Também é novo, e extremamente importante, o artigo 20, que veda ao médico "permitir que interesses pecuniários, políticos, religiosos ou de quaisquer outras ordens, do seu empregador ou superior hierárquico ou do financiador público ou privado da assistência à saúde interfiram na escolha dos melhores meios de prevenção, diagnóstico ou tratamento disponíveis e cientificamente reconhecidos no interesse da saúde do paciente ou da sociedade". Trata-se de um importante reforço para a utilização da autonomia do médico, voltada exclusivamente à saúde e bem-estar dos pacientes e da sociedade.

Com respeito a remuneração profissional o Capítulo VIII acrescenta três novos artigos, sempre zelando por uma atuação médica ética e não comercial. O Artigo 68 define com ênfase que "É vedado ao médico o exercício mercantilista da Medicina". O artigo 66 veda a "dupla cobrança por ato médico realizado", alertando, entretanto, que "a complementação de honorários em serviço privado pode ser cobrada quando prevista em contrato". Já o artigo 72 veda totalmente que o médico possa "...estabelecer vínculo de qualquer natureza com empresas que anunciam ou comercializam planos de financiamento, cartões de descontos ou consórcios para procedimentos médicos".
O Capítulo XI diz respeito a Auditoria e Perícia Médica incluindo os artigos 95 ( que veda “a realização de exames médico-periciais de corpo delito em seres humanos no interior de prédios ou de dependências de delegacias de polícia, unidades militares, casas de detenção e presídios.”) , 96 ( que define ser vedado ao médico “Receber remuneração ou gratificação por valores vinculados à glosa ou ao sucesso da causa, quando na função de perito ou de auditor.”) e 97 ( que veda ao médico “autorizar, vetar, bem como modificar, quando na função de auditor ou de perito, procedimentos propedêuticos ou terapêuticos instituídos, salvo, no último caso, em situações de urgência, emergência ou iminente perigo de morte do paciente, comunicando, por escrito, o fato ao médico assistente.”).

No Capítulo XII, relacionado com Ensino e Pesquisa Médica, além dos novos incisos definidos nos princípios Fundamentais, surgem dois novos artigos: o de número 106, que diz ser vedado ao médico “Manter vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas envolvendo seres humanos, que usem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada.” e o de número 110 que reza ser vedado ao médico “Praticar a Medicina, no exercício da docência, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, sem zelar por sua dignidade e privacidade ou discriminando aqueles que negarem o consentimento solicitado.”.

O Capítulo XIII tem como novo artigo o de número 118, que determina que ao médico é vedado “Deixar de incluir, em anúncios profissionais de qualquer ordem, seu número de inscrição no Conselho Regional de Medicina”, acrescentando em seu parágrafo único que “nos anúncios de estabelecimentos de saúde devem constar o nome e o número de registro, no Conselho Regional de Medicina, do diretor técnico.”.
O inciso II da Disposições Gerais (Capítulo XVI) leva para o Código a “suspensão cautelar” ao definir que “Os médicos que cometerem faltas graves previstas neste Código, e cuja continuidade do exercício profissional constitua risco de danos irreparáveis ao paciente ou à sociedade, poderão ter o exercício profissional suspenso mediante procedimento administrativo específico.”.

Se o Código de 1988 se caracterizou pela preocupação com os direitos humanos e direitos do cidadão, o Código de 2009, que entra em atividade a partir de 13 de abril de 2010, busca reforçar as conquistas de 1988 acrescentando agora preocupações maiores com os dilemas bioéticos, relação médico-paciente e autonomia dos pacientes, ante a velocidade dos avanços tecnológicos, que nem sempre significam avanços na qualidade de vida e felicidade das pessoas.

DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

Sérgio Roxo da Fonseca

Há expressões consagradas pela linguagem normativa brasileira, muitas das quais servem para todas as coisas, o que significa também que não servem para nada. Ou para quase nada. São expressões plurissignificativas como “mulher honesta”, “justo preço”, e, “interesse público”.
Afirmou-se que tais expressões contém conceitos jurídicos indeterminados em oposição a outras que são extraídas das ciências exatas como, por exemplo, a ordem numérica. No Brasil, os servidores públicos são compulsoriamente aposentados aos setenta anos, não mais que um, nem menos do que um, mas setenta.
A primeira questão a responder é saber se há duas maneiras de enfrentar o problema, ou melhor, dizendo, se há ou não um método para aplicar regras imprecisas e outro para as regras precisas.
Salta aos olhos que a linguagem normativa é composta mais por conceitos imprecisos do que por precisos, ainda que, sempre quando podem, os legisladores optem ou devem optar sempre pela precisão.
A doutrina clássica da metade do século XX afirmava que os conceitos precisos deveriam ser aplicados mecanicamente. Setenta é setenta e não é sessenta e nove, nem setenta e um. Ao contrário, os conceitos imprecisos refletem o reconhecimento de poderes mais amplos outorgados pela Legislação à Administração que assim avaliaria a questão segundo seu juízo subjetivo.
Ao se reconhecer o poder da Administração revelar a extensão do direito no caso concreto, identificou-se então o que conhecemos pelo nome de discricionariedade, em oposição à arbitrariedade. No domínio discricionário, a Administração teria mais amplos poderes, porém poderes outorgados pela lei. No domínio da arbitrariedade a Administração agiria independentemente de qualquer lei, criando direito novo, como se fosse o legislador, o que contrariaria os princípios básicos do Estado de direito.
A doutrina identificou a existência de uma avaliação administrativa livre das regras legais. Houve e há quem sustente a existência de uma “margem de livre apreciação”.
É escusado dizer que tanto lá como aqui, vozes importantíssimas sempre negaram qualquer “margem de livre apreciação”, sustentando que o Estado de direito é aquele no qual a Administração somente age sob e conforme a lei, não podendo, portanto, preencher qualquer lacuna possivelmente encontrada, por mais relevante que possam ser os interesses postos em jogo.
O grande mestre português Afonso Rodrigues Queiró inicialmente alinhou-se ao lado daqueles que dividiam a competência em duas esferas, uma resultante da precisão, outra resultante da imprecisão de conceitos. O mestre de Coimbra escreveu pouco e muito bem. Os seus últimos documentos refletem o seu afastamento de suas antigas visões e a adesão à corrente monista.
Tal corrente sustentou e sustenta que não há discricionariedade quando a norma espelha conceitos precisos ou imprecisos. Cabe ao administrador obedecer rigidamente à precisão ou à imprecisão, sem pretender encontrar qualquer brecha ou margem de livre apreciação. Tal é a corrente monista sustentada pelo espanhol Eduardo Garcia de Enterría.
Mas então não existiria mais discricionariedade? A doutrina afirma que o regime democrático esforça-se em restringir ao máximo a discricionariedade que, contudo, dificilmente poderá ser eliminada.
Onde então estaria a discricionariedade? Estariam na inserção de conceitos da ciência da Administração no contexto da norma, conceitos, portanto, que não habitam o domínio da ciência jurídica, como, por exemplo, quando o legislador autoriza o administrador a contratar servidores sem concurso público, sempre por prazo determinado, para atender a excepcional interesse público. Cabe ao administrador dizer o que é “excepcional interesse público”. Não ao jurista.
Tal visão, contudo, não exclui o controle judicial da discricionariedade que se faz pelas cinco vias de acesso reveladas pela jurisprudência do Conselho de Estado francês: a) controle de norma de fundo; b) controle de norma de forma; c) controle de competência; d) controle de existência ou inadequação de motivos; e) controle de desvio de finalidade.
roxodafonseca@gmail.com